Descrição de chapéu The New York Times

Críquete ajuda a mudar visão de franceses sobre imigrantes do Afeganistão

Fluxo de afegãos para o norte da França popularizou o esporte na região

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Elian Peltier
Saint-Omer (França) | The New York Times

Os jogadores explodiram de alegria, dançando e gritando em pashto, para celebrar sua segunda vitória em um torneio regional de críquete. A cena teria parecido familiar em certas áreas do Afeganistão e Paquistão, mas é muito menos comum no norte da França.

O Saint-Omer Cricket Club Stars, ou SOCCS, havia acabado de vencer um torneio jogando em sua casa, um novo campo de críquete ao lado de um pasto. Para o capitão da equipe, Javed Ahmadzai, porém, o triunfo mais doce era outro.

"A melhor vitória acontece fora de campo", disse o pedreiro Ahmadzai, 32, que chegou à França em 2005. "Quando ensinamos críquete às crianças nas escolas locais e elas pedem que o treino dure mais, ou dizem aos seus pais que os imigrantes não são assim tão malvados".

Dar vida ao críquete em Saint-Omer vai bem além do esporte, para Ahmadzai e seus colegas. É uma oportunidade de serem parte da comunidade, de serem vistos como campeões locais e não só como estrangeiros.

Mas isso nem sempre foi fácil.

Jogadores e torcedores do Saint-Omer Cricket Club Stars comemoram título regional
Jogadores e torcedores do Saint-Omer Cricket Club Stars comemoram título regional - Mauricio Lima/The New York Times

Durante a crise de imigração europeia de 2015, refugiados que esperavam chegar ao Reino Unido se viram concentrados em campos esquálidos no norte de França, vivendo em condições traiçoeiras em locais como "a selva", um campo em Calais, menos de 50 quilômetros ao norte de Saint-Omer.

Marine Le Pen, líder do partido francês de extrema direita, inimigo da imigração, e candidata à Presidência, argumentava que o país havia sido prejudicado pela "imigração em massa", e muitas vezes citava os campos de refugiados em suas críticas.

A mensagem dela foi bem recebida na região, e Le Pen obteve a maior votação entre todos os candidatos, em Saint-Omer, no primeiro turno da eleição presidencial do ano passado. Ela recebeu 39% dos votos da cidade no segundo turno, ante 33,9% no país como um todo.

Mas dois anos depois que o governo limpou "a selva", em outubro de 2016, continuam a acontecer ações policiais frequentes nos campos de imigrantes, e a vida de muita gente continua no limbo. O número de imigrantes na região de Calais caiu de 8 mil para 400. Muitos, entre os quais alguns dos moradores da "selva" que esperavam atravessar o Canal da Mancha, optaram por ficar em Saint-Omer.

Eles estudam, trabalham ou buscam empregos e, no caso de alguns jogadores do SOCCS, esperam que o esporte os ajude a se estabelecerem na cidade de 16 mil moradores. Saint-Omer tem mais de 5.600 refugiados em seus campos, desde 2015, a maior parte deles em um centro para refugiados menores de idade.

"Sempre que jovens afegãos chegam a Saint-Omer, uma das primeiras coisas que perguntamos é se sabem jogar críquete", disse Jean-François Roger, diretor regional da France Terre d’Asile, uma organização custeada pelo Estado que ajuda refugiados. "O SOCCS lhes dá estrutura. Ajuda-os a ir adiante e a construir alguma coisa aqui".

Integrantes do time de críquete de Saint-Omer, na França
Integrantes do time de críquete de Saint-Omer, na França - Mauricio Lima/The New York Times

A França não é conhecida exatamente pelo críquete, esporte jogado principalmente em países do antigo império britânico. A modalidade não tem lugar importante no panteão esportivo francês, com cerca de 18 mil jogadores registrados em 50 clubes no país, ante cerca de 2,2 milhões de jogadores de futebol federados. Mas com o influxo de imigrantes do Afeganistão, o número de times de críquete no norte da França cresceu de 2 para 9.

O SOCCS é um deles. Na terceiro trimestre de 2016, Ahmadzai e outros afegãos estavam jogando críquete com uma bola feita em casa, em uma praça em Saint-Omer. Um empresário local que estava correndo na praça, Christophe Silvie, parou para lhes perguntar sobre o jogo. Meses depois, Silvie, Ahmadzai e outro voluntário chamado Nicolas Rochas, que vive na área, fundaram o clube.

O time começou a treinar em um ginásio local e logo venceu um torneio. Depois um segundo.
Hoje, cerca de 30 jogadores de Saint-Omer e áreas próximas, com idades dos 15 aos 33 anos, ajudaram a fazer da cidade um centro de excelência no críquete. Na verdade, a recente final não causou grande suspense: o clube tem dois times, e os dois derrotaram seus adversários na temporada regular e nos playoffs, e por isso o primeiro time do clube enfrentou o segundo na final.

"O críquete ajudou os jogadores a ganhar autoconfiança inestimável e a combater o isolamento e a solidão", disse Rochas, vice-presidente do SOCCS, que assistiu à final em setembro com seus dois filhos pequenos. "É mais que um clube —somos como uma família, agora".

Por anos, Saint-Omer era a única cidade da região que abrigava um centro da France Terre d'Asile para refugiados menores de idade, a maioria dos quais vindos da Eritreia e do Afeganistão.

Em 2017, o Afeganistão ocupava a segunda posição entre os países de origem dos solicitantes de asilo na França, com 6 mil dos 100 mil pedidos recebidos. Em 2017, a organização acomodava 2.230 imigrantes na cidade, ante 300 em 2013. Muitos dos jovens jogadores do SOCCS passaram pelo centro.

"Senti que cresci muito aqui e conheço as pessoas, por isso quero que os títulos sejam um presente para Saint-Omer", disse Abdulwali Akulkhil, 17, jogador afegão do SOCCS que costumava viver no centro de refugiados, sobre as vitórias do time.

William Gasparini, professor de sociologia na Universidade de Estrasburgo e especialista em esportes, disse que as atividades coletivas podem de fato ser uma plataforma para a integração, criando conexões que vão bem além do campo.

"Os dirigentes de clubes amadores são em muitos casos empresários locais ou pessoas com boas conexões na área, e isso dá aos imigrantes um capital social útil", ele disse.

Rochas, vice-presidente do clube, conhecido entre os jogadores como Big Brother, ajudou diversos deles a encontrar vagas em cursos de treinamento como motoristas de caminhão e mecânicos. Também ajudou outro jogador, que fala cinco idiomas e quer se tornar diplomata, a conseguir um estágio no legislativo francês.

Mas apesar de todo o progresso em campo e fora dele, os jogadores do SOCCS tiveram de enfrentar resistência. Mensagens xenófobas surgiram na mídia social quando François Decoster, prefeito de Saint-Omer, permitiu que o clube construísse um campo de críquete em um terreno não utilizado, na entrada da cidade. Alguns posts ameaçavam ataques ao local, e outros espalhavam o boato de que uma mesquita seria construída lá.

"Tive de explicar vezes sem conta quem eram esses jovens, e de onde eles vieram", disse Decoster, que é membro de um partido de centro.

O prefeito diz que os esforços para ajudar os refugiados a se assentarem "em nível local e na escala apropriada", por meio de iniciativas como o esporte, podem ajudar a combater muitas ideias preconcebidas. Se mais cidades e países favorecessem esse tipo de atividade, "não teríamos os Salvini, os Orban e os Le Pen", ele disse, em referência ao ministro do interior da Itália, ao primeiro-ministro da Hungria e à líder da extrema direita francesa.

As queixas sobre o SOCCS parecem ter se atenuado, mas o otimismo de Decoster ainda não foi confirmado por uma onda de forte apoio local ao clube. Apenas algumas dezenas de pessoas assistiram à final, muitas das quais voluntários do clube ou conhecidos de seus dirigentes.

Horas mais tarde, enquanto os jogadores tocavam buzinas e brandiam bandeiras francesa enquanto circulavam pela praça central da cidade, a maioria das pessoas que estavam sentadas diante de suas casas os encarava, interessada mas desinformada sobre o motivo da comemoração.

"Recebemos prêmios, cumprimentos e promessas, mas muitos jogadores querem saber porque não vemos mais entusiasmo local, depois de um segundo título", disse Rochas, o vice-presidente do clube.

Em 2017, o clube recebeu um European Citizen's Prize, concedido a cada ano pelo Parlamento Europeu a cidadãos ou organizações que promovem a cooperação e compreensão internacional. Mas ainda lhe faltam os recursos e voluntários de que precisaria para jogar na liga nacional de críquete da França, o que suas vitórias em nível regional o qualificariam a fazer.

Talvez ainda mais essencial seja a necessidade de atrair jogadores locais, disseram alguns dos integrantes do time. Até agora, um médico francês nascido em Saint-Omer é o único nascido na França entre os 30 jogadores do clube.

"Não podemos jogar só entre estrangeiros. Precisamos de novos recrutas franceses", disse Tazim Abbas, 19, jogador nascido no Paquistão. "De outra forma, quem vai manter o clube ativo quando eu tiver um emprego e uma vida aqui?"

Tradução de Paulo Migliacci

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