Escolhida em licitação de TV da CBF era uma empresa de móveis

Inexperiente, dona de oferta original de R$ 550 milhões por direitos do Brasileiro superou gigantes

A sede da CBF, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro
A sede da CBF, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro - Ricardo Borges-21.fev.2018/Folhapress
Diego Garcia Sérgio Rangel
São Paulo e Rio de Janeiro

A francesa Lagardère tem mais de 1.600 funcionários espalhados pelo mundo e 50 anos de experiência no esporte. Já a norte-americana Octagon representa centenas de atletas e gerencia cerca de 13 mil eventos por ano. A também norte-americana IMG, por sua vez, tem escritórios em mais de 30 países e é dona de direitos internacionais e comerciais de TV da Copa Libertadores e do bilionário Campeonato Inglês.

As três empresas internacionais e a suíça Sinergy participaram da licitação promovida pela CBF para explorar o Campeonato Brasileiro no exterior de 2019 a 2022, de acordo com documentos enviados pela entidade aos clubes. Além das quatro companhias internacionais, outras quatro nacionais fizeram proposta pelo direitos do principal torneio do futebol nacional.

No final, a oferta vencedora foi feita por uma empresa que pertencia ao ramo de móveis até o fim do ano passado. Com sede em uma pequena sala de um prédio no centro do Rio, a BR Newmedia consta na documentação da CBF como autora de uma proposta de R$ 550 milhões.

​Em 18 de dezembro de 2017, a Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro (Jucerj) deferiu mudanças no contrato social da Farimor Mobiliários de Escritório, que trocou de atividade econômica para agência de publicidade e passou a se chamar BR Newmedia Distribuição de Conteúdo Digital.

Na mesma época, a CBF já realizava movimentação para realizar a concorrência pelos direitos internacionais do Brasileiro. Segundo disse à Folha Walter Feldman, secretário-geral da CBF, esse procedimento teve início em julho de 2017, quando a confederação procurou os clubes para promover a licitação.

A Folha foi até o endereço da BR Newmedia, segundo registro na Receita Federal, e constatou que lá funciona o escritório de contabilidade Pinheiro Monteiro. O contador Edvan Pinheiro informou que a empresa hoje está “em stand by”.

As outras três firmas nacionais que participaram da licitação da CBF eram Klefer, Sport Promotion e Propaganda Estática.

A Klefer - do ex-presidente do Flamengo Kleber Leite -foi acusada pelo empresário José Hawilla, delator principal do caso Fifa, de pagar propinas por contratos de TV da Copa do Brasil. A empresa nega.

A Sport Promotion enfrentou acusações de fraude em convênios de 2011 com a FPF (Federação Paulista de Futebol), então presidida por Marco Polo Del Nero - o Ministério Público abriu inquérito, mas nada foi comprovado. A Propaganda Estática tem desde 2003 parceria com a FPF para explorar as placas de publicidade do Campeonato Paulista.

Todas as empresas envolvidas na licitação foram procuradas pela Folha ao longo do último mês. A IMG afirmou que não comenta suas negociações. A Octagon negou ter feito proposta na licitação da CBF e apontou que ofereceu, no caso, ajuda à confederação para analisar, vender e distribuir os direitos internacionais do Brasileiro, pedindo em troca 5% de comissão na negociação. As outras empresas não responderam.

A oferta da BR Newmedia foi escolhida como vencedora da licitação, mas quem assinou os contratos de R$ 550 milhões - sendo R$ 110 milhões pelos direitos internacionais e R$ 440 milhões pelas placas de publicidade - foi uma empresa chamada BR Foot Mídia, criada após a concorrência. A CBF ficou com comissão de 10% (R$ 55 milhões).

Caio Cesar Vieira Rocha, ex-presidente do STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) nas gestões José Maria Marin e Marco Polo Del Nero na CBF, foi o representante jurídico da BR Newmedia no processo de licitação e também era o único acionista da BR Foot Mídia à época da confecção dos contratos com CBF e clubes.

“Qualquer pergunta direcionada à empresa BR Newmedia talvez possa ser respondida por Patrícia Coelho, controladora da companhia. Por dever de sigilo, o advogado não sabe nem pode dizer se a exclusão da BR Newmedia [da licitação] e sua sócia se deu por irregularidade, desvio de conduta ou incapacidade financeira”, disse o ex-presidente do STJD, por meio de sua assessoria de imprensa.

A BR Newmedia, por sua vez, disse que Caio Cesar Vieira Rocha era o responsável pela negociação.

“A BR New Media esclarece que não conduziu nenhuma negociação com a CBF, tendo sido esta realizada pelo advogado Caio Rocha, e desconhece exclusão feita por grupo de investidores ou potenciais sócios por qualquer motivo. Quaisquer ilações diferentes desses fatos são totalmente repudiadas pela BR New Media”, disse a empresa, por meio de sua assessoria de imprensa.

Por telefone, Patrícia Coelho não quis dar entrevista, mas afirmou que a compra de uma empresa já existente é feita para acelerar o processo de criação de uma nova companhia. No caso, portanto, a Farimor Mobiliários foi adquirida pela empresária no mercado e batizada de BR Newmedia para participar da concorrência da CBF.

"A BR Newmedia foi uma start up criada para viabilizar um projeto online cujo foco era a produção de conteúdo jornalístico e publicidade em futebol”, explicou a empresa, em nota oficial. No começo do ano, ela já havia adquirido a Revista Placar por R$ 30 milhões, mas enfrentou problemas de pagamento posteriormente.

Até agosto, Vieira Rocha também aparecia como um dos membros do conselho de administração da BR Newmedia em documentos na Jucerj. O advogado diz que foi colocado à revelia no cargo, tendo comunicado o fato a Patrícia Coelho e notificado a empresa para excluir seu nome. Também aponta que foi acionista da BR Foot Mídia apenas de forma momentânea, até que as ações fossem adquiridas por uma empresa americana.

Conforme revelou a Folha em outubro, logo após assinar os contratos com a CBF, a BR Foot Mídia foi vendida a um fundo chamado FanFoot, localizado no paraíso fiscal de Delaware, nos EUA. O local é considerado o território com o sigilo mais rigoroso do mundo, razão pela qual a reportagem não conseguiu ter acesso aos donos da holding.

Anteriormente, a CBF já havia ressaltado ter existido transparência no processo de concorrência e disse que a empresa escolhida em um processo conduzido pelos clubes demonstrou todas as condições técnicas e garantias econômicas para o cumprimento do contrato.

Fechada com a BR Foot Mídia, a CBF se negou a ouvir propostas maiores apresentadas pelos clubes posteriormente. Uma delas, do fundo luxemburguês Prudent, levada pelo Flamengo, alcançava US$ 200 milhões (R$ 800 milhões), mais 50% das receitas, que poderiam chegar a US$ 3 bilhões (R$ 12 bilhões) em 10 anos.

Mesmo assim, a confederação não quis discutir com as equipes. Por essa razão, Flamengo e Atlético-PR ficaram fora dos contratos de TV e placas de publicidade. O Corinthians também se negou a assinar o segundo acordo.

OUTRO LADO
A CBF enviou uma nota para explicar novamente o processo de licitação citado na reportagem. Confira:

"Dez empresas foram convidadas para o processo de concorrência. Entre elas, estava a BR Newmedia, empresa que havia anunciado publicamente a intenção de participar do mercado de mídia esportiva, inclusive com a compra de empresa do setor [Revista Placar], em operação aprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) do Ministério da Justiça. Ela se apresentou associada à FanHero especializada em streaming internacional, e ao fundo Nova Milano como investidor.

As empresas que participaram da concorrência apresentaram diferentes tipos de propostas aos clubes pelo ciclo de quatro anos, que contemplavam uma ou as duas propriedades (direitos internacionais de transmissão e publicidade estática), com valores garantidos ou participação nas receitas.

Todas as propostas seguiram estritamente as regras do convite. No caso específico da Octagon, a opção foi por uma proposta sem valores garantidos aos clubes, onde ela faria a consultoria para montagem do projeto e receberia percentual das receitas geradas. Os clubes optaram por um modelo diferente.

Em sua proposta, o grupo vencedor deixou claro aos clubes que a composição final dos acionistas poderia ser alterada antes da assinatura do contrato. Os clubes concluíram que as garantias técnicas e financeiras estavam atendidas e escolheram essa proposta.

A CBF organizou a concorrência com o objetivo de otimizar o valor comercial dos dois direitos. A escolha da proposta vencedora foi exclusivamente dos clubes, depois de propostas formais e apresentações presenciais das empresas. A CBF não interferiu nem opinou na decisão.

A proposta vencedora ofertou aos clubes um valor muito superior e garantido. Foram R$ 100 milhões de luvas. As outras propostas recebidas atrelaram grande parte da remuneração a receitas variáveis. O valor apresentado significa o ingresso de R$ 550 milhões em dinheiro novo para o futebol e a inédita exploração de direitos pelos clubes de forma organizada, centralizada e com divisão igualitária de receitas."


Observação: A Folha procurou o Fundo Nova Milano, citado pela CBF em sua nota como parceiro da BR Newmedia na operação, mas a empresa respondeu que "jamais foi sócia da BR Newmedia ou da empresária Patrícia Coelho". Já a Fan Hero é sócia do fundo em paraíso fiscal FanFoot, que comprou a
BR Foot  Mídia.

 

AS PROPOSTAS NA LICITAÇÃO DA CBF

Veja as ofertas pelos direitos internacionais de TV e placas de publicidade do Campeonato Brasileiro de entre 2019 e 2022:

LAGARDÈRE (FRA)
TV: US$ 15 milhões (R$ 60 milhões) + 85% de lucros* aos clubes após US$ 4 milhões (R$ 16 milhões)
Placas: Não fez oferta por essa propriedade

SYNERGY (SUI)
TV: 85% dos lucros* aos clubes
Placas: 85% dos lucros* aos clubes

IMG (EUA)
TV:
Pacote de US$ 100 milhões (R$ 400 milhões), + 75% dos lucros* aos clubes
Placas: Oferta inserida junto aos direitos de TV ​

OCTAGON (EUA)
TV: Ofereceu vender e distribuir os direitos junto à CBF, com 5% de comissão
Placas: Não fez oferta por essa propriedade

PROPAGANDA ESTÁTICA 
TV: Não fez oferta por essa propriedade
Placas: R$ 210 milhões + 100% dos lucros* aos clubes após faturar R$ 82,5 milhões

KLEFER
TV: US$ 12 milhões (R$ 48 milhões) + 70% dos lucros* aos clubes (85% após R$ 120 milhões)
Placas: R$ 166 milhões + 90% dos lucros* aos clubes após faturamento de R$ 68 milhões

SPORT PROMOTION
TV: R$ 40 milhões + 80% dos lucros* aos clubes
Placas: R$ 200 milhões + 80% dos lucros* aos clubes

BR NEWMEDIA
TV: R$ 550 milhões, sem divisão de lucros
Placas de publicidade: Oferta inserida junto aos direitos de TV ​

BR FOOT MÍDIA
TV: Não fez oferta por essa propriedade
Placas: Não fez oferta por essa propriedade

Empresa vencedora: BR Foot Mídia por R$ 550 milhões, sem divisão de lucros, com comissão de 10% (R$ 55 milhões) à CBF

*Segundo estudo apresentado ao Flamengo, o projeto para transmitir o Brasileiro no exterior e explorar as placas de publicidade pode faturar entre US$ 1 bilhão e US$ 3 bilhões (R$ 4 bilhões a R$ 12 bilhões) em 10 anos - proporcionalmente, 4 anos de contrato renderiam de US$ 400 milhões (R$ 1,6 bilhão) a US$ 1,2 bilhão (R$ 4,8 bilhões).

LINHA DO TEMPO DA LICITAÇÃO DA CBF

Sondagem - Julho de 2017
CBF propõe a clubes organizar licitação pelos direitos internacionais e placas de publicidade do Brasileiro.

Concorrência - Janeiro/Maio de 2018
Em sua sede, CBF promove processo de concorrência com clubes e empresas

Contratos - Junho de 2018
BR Newmedia foi a vencedora, mas BR Foot Mídia aparece na confecção dos contratos 

Nascimento - Julho de 2018
BR Foot Mídia só é criada oficialmente no dia 4, após datas dos contratos com clubes

Propostas - Agosto de 2018
Times têm ofertas maiores de concorrentes, mas CBF ignora e assina com BR Foot Mídia

Paraíso fiscal - Setembro de 2018
Fundo Futbol Holdings (FanFoot) é criado no paraíso fiscal de Delaware, nos EUA

Venda Sigilosa - Outubro de 2018
BR Foot Mídia é vendida ao fundo FanFoot, que não revela nomes de investidores

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