Descrição de chapéu The New York Times

Cartola, Ronaldo evita repreender atletas e mira lucro com transferências

Ex-atacante da seleção brasileira comprou Real Valladolid, na Espanha

Ronaldo Nazario de Lima em seu escritório no Real Valladolid
Ronaldo Nazario de Lima em seu escritório no Real Valladolid - Laura Leon - 2.nov.18/The New York Times
Tariq Panja
Madri | The New York Times

Ronaldo Luiz Nazário de Lima, 42, ganhador de duas Copas do Mundo, precisou de algumas semanas para perceber que tem que escolher suas palavras cuidadosamente, agora que é proprietário de um time.

Pouco depois de investir cerca de US$ 30 milhões (R$ 117 milhões) para se tornar acionista majoritário do Real Valladolid, um clube da primeira divisão espanhola, em setembro, e fazer uma transição raríssima para um atleta de sua estatura, Ronaldo compareceu a um jogo no Estádio José Zorilla, a casa do Valladolid. Do camarote dos dirigentes, ele viu o meia Keko perder uma chance de marcar um gol quando tinha apenas o goleiro à sua frente.

Imaginando ter algo a contribuir, Ronaldo procurou Keko depois do jogo. Disse-lhe que em situações como aquela, é preciso segurar o nervosismo, e esperar que o goleiro se mexa primeiro.

"Isso é fácil de dizer quando você é o Ronaldo", foi a resposta que ouviu.

"Parei de falar", disse Ronaldo. "Não vou mais lhes dizer o que penso".

"Para mim, as coisas foram muito fáceis", ele acrescentou.

Em uma carreira de duas décadas que incluiu marcar os dois gols da vitória do Brasil na final da Copa do Mundo de 2002, Ronaldo foi um artilheiro fenomenal. Jogador que ganhou fama mundial aos 20 anos de idade, ele tornou o nome Ronaldo mundialmente famoso antes que houvesse um Cristiano Ronaldo no esporte.

Sua influência sobre a atual geração de astros é inegável. Continua a ser o ídolo de jogadores em atividade, de Zlatan Ibrahimovic ao meio-campista Marouane Fellaini, do Manchester United. O centroavante inglês Harry Kane disse que procura constantemente vídeos de jogadas de Ronaldo, talvez o primeiro ícone futebolístico da era da internet, para aperfeiçoar seu jogo.

A compra do Valladolid, um time fundado 90 anos atrás, por Ronaldo, na metade do ano, também pode mostrar a outros jogadores que existem possibilidades diferentes de trabalho para o pós-carreira, além de treinar times ou trabalhar como comentarista televisivo.

"Acho que vai ser bonito se isso acontecer", disse Ronaldo, sobre comprar um clube. "Espero começar um movimento que traga mais investimento dos jogadores no futebol".

Já que os grandes jogadores de futebol hoje ganham salários superiores aos lucros de uma empresa média, há sinais de que eles podem seguir o exemplo de Ronaldo e de David Beckham, cabeça do grupo que comanda o Inter Miami, um clube que deve estrear em 2020 na Major League Soccer dos Estados Unidos. Gerard Piqué, zagueiro do Barcelona, criou um fundo de investimento em esporte, com um colega de time, Lionel Messi, e o ex-colega Cesc Fábregas. Os três se conhecem desde que eram parte das categorias juvenis do clube catalão.

"Converso com ele sobre negócios", disse Ronaldo sobre Piqué. "Precisamos nos encontrar e conversar mais".

Ronaldo, 42, pai de quatro filhos, atribui seu interesse por negócios aos seus primeiros dias no futebol. Nascido em uma família pobre que vivia em uma casa de dois cômodos em Bento Ribeiro, um subúrbio de classe operária do Rio de Janeiro, ele se tornou o arrimo da família aos 15 anos, quando se mudou 320 quilômetros para o norte para defender o Cruzeiro, de Belo Horizonte, estreando na equipe principal do clube aos 16 anos.

"Tive de começar muito cedo a me administrar, a administrar meu dinheiro, a administrar minha família", ele disse em entrevista ao The New York Times, sua primeira desde que adquiriu o Real Valladolid, em um escritório para o qual se mudou recentemente na Calle Serrano, em Madri.

O imponente bulevar, ladeado por lojas de grifes, restaurantes elegantes e alguns dos apartamentos mais caros da Espanha, fica a cerca de oito mil quilômetros de Bento Ribeiro. Bem poderia estar em outro universo, comparado à cidade onde ele aprendeu a jogar, cujas casas precárias construídas com blocos de concreto, empilhadas umas contra as outras, fazem a ideia de uma loja de produtos de luxo parecer completa fantasia.

A vida que o futebol propiciou a Ronaldo era inimaginável em sua infância. Alguns dos astros com quem ele jogou não souberam lidar com a riqueza que acumularam no esporte, ele disse, recordando diversos exemplos de antigos companheiros de time que perderam fortunas e voltaram a viver na miséria.

"Eu tinha medo disso e decidi aprender tudo que podia, fazer o melhor que podia, ter as melhores opiniões sobre marketing, e assim por diante", disse Ronaldo.

Além de comprar o Valladolid, ele também está abrindo uma empresa chamada Family Office Concierge R9, que prestará serviços de administração de patrimônio para atletas, para que eles possam continuar a lucrar com suas carreiras mesmo depois da aposentadoria.

Ronaldo possa ao lado do prefeito de Valladolid, Oscar Puente (esq.), e do presidente do clube espanhol, Carlos Suarez
Ronaldo possa ao lado do prefeito de Valladolid, Oscar Puente (esq.), e do presidente do clube espanhol, Carlos Suarez - Cesar Manso - 3.set.18/AFP

"Estamos tentando fazer por eles o que fiz por mim: garantir que tenham uma vida longa com todo o dinheiro que ganharam", ele disse.

Ronaldo disse que era curioso sobre negócios desde seus dias como um adolescente dentuço que complicava a vida dos defensores incapazes de lidar com seu talento, seu instinto e seu ritmo de jogo.

Ele sempre se cercou de administradores de negócios e executivos de marketing esportivo, desde seus primeiros dias no Brasil e na Europa, dos primeiros passos no PSV da Holanda à era dos galácticos, o time de astros montado pelo Real Madrid. O ex-atacante dedicava muita atenção ao que esses profissionais faziam, disse, especialmente aos executivos da Nike, o colosso dos materiais esportivos sediado nos Estados Unidos que continua a investir em sua marca até hoje.

No Real Madrid, Ronaldo jogou em companhia de Beckham, Zinedine Zidane e Luis Figo, em uma era na qual o presidente do clube, Florentino Pérez, tentou tanto montar um time capaz de conquistar numerosos títulos quanto criar uma máquina poderosa de marketing esportivo.

Os times de Ronaldo no Real Madrid não conseguiram títulos na maior competição do futebol europeu, a Champions League, mas criaram uma aura de celebridade que ainda persiste no esporte.

"Creio que o mundo do marketing e do dinheiro no futebol tenha mudado por conta disso", diz Ronaldo.

Desde que parou de jogar, em 2011, Ronaldo vem se concentrando em aprender mais como gestor, e em construir um império de negócios diversificado. Ele foi um dos líderes do comitê que organizou a Copa do Mundo de 2014 no Brasil, trabalhando em estreito contato com diversos dirigentes de futebol brasileiros mais tarde acusados de corrupção por investigadores americanos. O ex-presidente do Comitê Organizador da Copa-2014, José Maria Marin, está preso nos Estados Unidos. Além dele, os ex-presidentes da CBF Ricardo Teixeira e Marco Polo Del Nero enfrentam acusações, que eles negam. 

Ronaldo oferece seu próprio veredicto: "Eles fizeram algo horrível com o futebol: roubaram das pessoas", diz. "Roubaram a magia, a felicidade".

Ao passar a se dedicar aos negócios em tempo integral, ele criou uma agência de marketing esportivo em parceria com o WPP, o maior grupo publicitário do planeta. A empresa operou por quatro anos, e em seguida Ronaldo adquiriu as operações brasileiras do grupo de marketing esportivo Octagon. Essas empreitadas resultaram em uma amizade com Martin Sorrell, o fundador do WPP, que convenceu o ex-jogador a tentar viver em Londres. Ronaldo morou na cidade por três anos, e aprendeu inglês ao longo do caminho.

Depois se mudou para Madri, onde mora com a namorada, e dedica a maior parte de seu tempo ao Valladolid, um clube com brilho muito inferior ao da marca pessoal e ao da trajetória de Ronaldo no futebol.

Com sede localizada a 200 quilômetros de Madri, o Valladolid até hoje conquistou apenas um troféu importante - em 1984, um título da copa da liga espanhola, torneio que mais tarde deixou de existir. O objetivo imediato, disse Ronaldo, é manter o time na primeira divisão e continuar dividindo os gramados com rivais como o Barcelona e o Real Madrid. O objetivo de longo prazo é provar que ele é um proprietário "capaz de tornar o futebol melhor".

Uma visita ao escritório dele em Madri dá indicações de que o projeto ainda está em sua infância. Uma versão metálica do escudo do Valladolid é o único elemento decorativo nas paredes brancos do saguão de entrada, e outras salas mostram estantes vazias e mesas e cadeiras compradas recentemente, ainda à espera de ocupantes. Ronaldo mesmo se acomoda a uma mesa onde se vê pouco mais que um laptop e papéis com o logotipo da companhia.

Ele não divulga muitos detalhes sobre seus planos para o Valladolid, mas existem sinais de que boa parte do foco estará em aproveitar sua fama e suas conexões com o Brasil para obter lucros no mercado de transferências de futebolistas, que movimenta US$ 6 bilhões ao ano. Nos meses transcorridos desde que assumiu o Valladolid, Ronaldo triplicou, para 15, o número de olheiros do clube, e diz que pretende contratar mais seis.

"Creio que haja um grande negócio nisso", disse Ronaldo, cuja primeira transferência aconteceu em 1992, em um negócio de US$ 7,5 mil no qual os compradores foram dois empresários do Rio de Janeiro. Ele também planeja investir na escolinha do Valladolid, para identificar e desenvolver talentos locais.

E há a presença de Ronaldo. Ainda que tenha ganhado muito peso, em comparação ao corpo franzino que tinha ao começar a jogar, ele continua a ser um astro capaz de parar o trânsito em cidades de todo o mundo. Torcedores armados de celulares continuam a importuná-lo com pedidos de fotos, como fazem com os membros da atual geração de ídolos do futebol, e uma equipe de documentaristas acompanhou Ronaldo por todo o ano passado, registrando material para um filme de grande orçamento sobre sua vida.

Anos depois de ter deixado os gramados, ele explicou, sua maior força - nos negócios, no Real Valladolid e quem sabe um dia na governança do futebol - continua a ser a marca pessoal que estabeleceu.

"Eu não poderia estar aqui sem mim", disse Ronaldo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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