Se jogasse no futebol masculino, não precisaria trabalhar nunca mais, diz Marta

Eleita pela 6ª vez melhor do mundo, brasileira planeja disputar sua quinta Copa em 2019

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Marta segura a bola durante entrevista - Ricardo Borges/Folhapress
Rio de Janeiro e São Paulo

A simplicidade no jeito de conversar e no trato com as pessoas fazem o interlocutor pensar que não está diante da melhor jogadora de futebol do mundo, mas da menina humilde que jogava bola nas quadras e campinhos de Dois Riachos, interior de Alagoas.

Em setembro deste ano, a atacante Marta, 32, foi eleita pela sexta vez a melhor futebolista do planeta. Não há na história do esporte nenhum atleta, homem ou mulher, que tenha recebido esse prêmio tantas vezes. Nem Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, com cinco troféus cada um.

Mesmo assim, não é possível comparar os ganhos financeiros dos dois craques com os da brasileira. O que leva Marta, inclusive, a já pensar no que fazer depois que encerrar sua carreira. 

 

“Não tenho do que reclamar. Porém, no futebol feminino é muito pouco o que ganhamos comparado com o masculino. Não falta comida na mesa, não vivo mal, mas não tenho regalia. Se eu jogasse futebol masculino, não ia precisar trabalhar nunca mais. Se eu parar, precisarei ainda fazer alguma coisa”, diz a atacante que planeja disputar a Copa-2019, na França.

Lutar num esporte ainda visto como masculino não é uma novidade para a atacante da seleção e do Orlando Pride (EUA). “Os meninos não se atreviam a falar merdinha comigo [no início da carreira]. Se falasse, eu entrava na porrada”, conta sobre quando começou a jogar. 

Hoje em dia, entretanto, Marta busca resolver diplomaticamente as questões de preconceito. Desde julho deste ano,  é embaixadora global da ONU Mulheres, a primeira e única sul-americana a ser nomeada.

Também fazem parte as atrizes Nicole Kidman, Emma Watson e Anne Hathaway.

Marta controla a bola na cabeça - Ricardo Borges/Folhapress
 

 

Esperava ganhar o prêmio de melhor do mundo este ano?  Eu fiquei muito feliz quando vi meu nome entre as três melhores. Depois que recebi a notícia, comecei a imaginar que poderia ganhar o prêmio porque a escolha foi baseada na temporada de 2017 para 2018.

Na minha primeira temporada no Orlando Pride, ficamos em terceiro [na liga dos EUA], fui a artilheira e a jogadora que mais deu assistências. Sem menosprezar as outras duas concorrentes [Ada Hegerberg e Marozsan], mas sabia que poderia ganhar. Elas jogam no melhor time da Europa, que é o Lyon, e foram campeãs da Champions. Os requisitos eram muito maiores, mas se tratando de prêmios individuais você tem que levar os números em consideração. Então, fiquei confiante.

Seis vezes eleita a melhor do mundo, o que Marta ainda sonha conquistar?  Meu sonho já aconteceu que era jogar futebol, ser profissional, chegar à seleção e viver do futebol. Agora, quero aproveitar as chances que surgirem. Em 2019, quero começar superbem para que isso possa se refletir no meu time e na seleção. Fazer um grande Mundial e buscar o título que já esteve tão próximo.

A Marta já fez o pé-de-meia? Eu vivo bem. Não tenho do que reclamar. Porém,  no futebol feminino é muito pouco o que ganhamos comparado com o masculino. Você sabe que a maioria dos grandes jogadores tiveram dificuldades financeiras, a família é enorme. E eu? Eu também. Não falta comida na mesa, não vivo mal, mas não tenho regalia. Se eu jogasse futebol masculino, não ia precisar trabalhar nunca mais. Se eu parar, vou precisar continuar fazendo alguma coisa.

Já foi vítima de sexismo? Já ouviu que por ser mulher não deveria jogar futebol?  Essa primeira parte não. Os meninos não se atreviam a falar merdinha comigo. Se falassem, eu entrava na porrada. Já defendi amigas de piadinha de mau gosto. A galera também entra na onda porque elogiam a gente e fazem comparação com o futebol masculino falando que temos que jogar no lugar de alguém. Com as redes sociais mais ativas, surgiram comentários machistas, como homem macho. Eu lia e ficava chateada, mas hoje não.

Passei a maior parte da carreira na Europa e nos Estados Unidos e lá dificilmente você escuta esses comentários.

Já fui vítima de preconceito no início da minha carreira. Isso aconteceu em Alagoas.

Quem é o grande responsável pela sucesso de sua carreira? É difícil citar porque várias pessoas me ajudaram muito. Tenho que agradecer a minha mãe, que me incentivou muito. Nunca tentou evitar que eu deixasse de seguir o meu sonho. Ela não tinha condições de me ajudar financeiramente, mas incentiva da maneira que podia, que era não impedir que eu jogasse. Os meus próprios irmãos por perceberem que os comentários eram machistas e preconceituosos tentavam me proteger, mas essa proteção era vista como algo que eles não gostavam. A proteção era aquela vou tirar você daí porque não é lugar de você ficar. Eu não culpo eles porque a cidade [Dois Riachos] é muito pequena e todos ficavam falando.

Qual a maior alegria e a maior decepção na seleção? Em termos de conquista foi em 2004, quando ganhamos a prata na Olimpíada de Atenas. Porém, foi a maior tristeza também porque chegamos tão próximos e não conquistamos o ouro. Foi uma tristeza também por saber que a prata não é tão valorizada no futebol no Brasil. A prata foi valorizada, mas para pessoas que conhecem a realidade, que sabem das nossas dificuldades. Porém, não foi valorizada de modo geral. Não enxergaram que foi um feito histórico como acontece nos outros esportes olímpicos. 

Qual seria o maior reconhecimento do país para você? Fomentar a modalidade, o incentivo, a busca de melhorias constantes. É bom você perceber que o que se propôs a fazer está fazendo a diferença, está ajudando não apenas você, mas outras meninas. Esse é o melhor reconhecimento. 

CBF e Conmebol exigem que os times tenham a modalidade em 2019. Como analisa? Gostaria que fosse algo natural, algo por gostar do esporte, gostar do trabalho e não obrigação. Por outro lado, é legal ter os times de camisa porque eles têm influência. 

O Brasil perdeu a chance de aproveitar sua imagem para o desenvolver a modalidade? Vê situação parecida com o tênis com o Guga? Não é apenas com a Marta, mas com a Formiga, a Sisi. As oportunidades quando surgem temos que aproveitar. O Guga foi e é o ícone do nosso esporte. Se não foi na época em que ele estava no auge, que seja agora. Não pode deixar de aproveitar as coisas boas, para que possamos crescer junto com elas, servir de exemplo. Poderia começar desde o primeiro momento, mas nunca é tarde. Fica a dica.

Algumas modalidades equipararam valores de premiação para homens e mulheres. O futebol feminino está longe disso, principalmente no Brasil. Pensa em levantar essa bandeira?  Isso é a desigualdade existente. Eu sempre levanto essa bandeira. Sou embaixadora da ONU. Está incluso no nosso trabalho. Eu falo isso constantemente. A gente luta para que possamos a cada dia sentir que está diminuindo essa desigualdade. Ainda está muito distante, porém, não é apenas no Brasil. O futebol na Europa é a mesma coisa. É uma disparidade.

O que você achou das eleições?  Não vou me pronunciar porque não é compatível com o trabalho que faço na ONU [é embaixadora global].

A seleção ficou fora do pódio em Londres-12 e na Rio-16 e também nos dois últimos mundiais. Paramos no tempo? É difícil você querer que surja talentos sem ter incentivo. Muitas meninas pararam porque não conseguiram ver uma chance. Ter que estudar e sair correndo para o treino não sendo remunerada. Chega um momento em que se sentem exaustas, cansadas. Aí fica difícil. Lá fora as seleções têm uma facilidade maior de encontrar o produto. O trabalho foi muito lento de renovação aqui. Quando parou a Pretinha não veio outra, quando parou a Roseli, não veio outra. E isso atrapalha.

RAIO-X

Marta

Natural de Dois Riachos (AL), a cerca 200 km de Maceió, a atacante começou no esporte em sua cidade natal. Aos 14 anos, se transferiu para o Vasco, onde ficou até 2003, quando foi jogar pelo Santa Cruz-BH. Ela ainda atuou no Umea (SUE),  Los Angeles Sol (EUA), FC Gold Pride (EUA), Western New York Flash (EUA), Santos, Tyreso (SUE) e e FC Rosengard (SUE). Há 20 meses, está no Orlando Pride. 

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