Descrição de chapéu The New York Times

Aventureiros contam perigos e desafios de travessia sem auxílio da Antártida

Apesar de feito histórico, Colin O'Brady e Louis Rudd não foram poupados de críticas

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Adam Skolnick
Nova York | The New York Times

Colin O'Brady e Louis Rudd se enfrentaram por quase dois meses em uma corrida para atravessar a Antártida, jornada que matou um aventureiro que a tentou em 2016. De volta a climas mais quentes, eles falaram sobre a maior corrida de suas vidas.

Em 3 de novembro, um avião Twin Otter dotado de esquis desceu do céu azul cobalto e aterrissou na plataforma de gelo de Ronne, na ponta oeste da Antártida. O aventureiro americano Colin O'Brady, 33, e o capitão do exército britânico Louis Rudd, 49, desembarcaram para tentar algo que ninguém havia realizado - uma travessia solo e sem apoio do continente mais gelado do planeta.

Arrastando pulks (trenós plásticos) carregados com tudo de que precisariam para sobreviver por pelo menos dois meses, eles colocaram seus esquis e iniciaram sua corrida até a plataforma de gelo de Ross, uma jornada de 1.482 quilômetros em linha reta. Em alguns momentos do percurso, eles encontrariam sensação térmica equivalente a -57°C, e nos dias de névoa e neve forte eles enfrentariam visibilidade quase zero; também estariam expostos a nevascas fora de estação, isolamento e dor.

Em 26 de dezembro, O'Brady concluiu a jornada, depois de uma marcha final de 32 horas ininterruptas. Em uma façanha espantosa, ele concluiu os 125 quilômetros finais do percurso sem parar, começando na manhã do Natal e prosseguindo pela noite branca. Rudd concluiu a travessia dois dias mais tarde. O'Brady perdeu 10 kg, e Rudd mais de 13 kg, e quando eles achavam que a missão estava cumprida, o clima desfavorável aos voos os forçou a esperar dois dias adicionais pela viagem de retorno ao relativo conforto, e pelo seu primeiro banho desde o começo de novembro.

Desde que completaram a jornada, surgiu debate considerável entre os aventureiros polares sobre como essa expedição se compara à viagem de Borge Ousland em 1996/1997, que começou e terminou nas maciças plataformas de gelo que ladeiam o continente. Rudd e O'Brady declaram o maior respeito por Ousland, que esquiou com a ajuda de um parapente, um recurso que o ajudou a percorrer três mil quilômetros.

Trajeto percorrido por Colin O'Brady e Louis Rudd
Trajeto percorrido por Colin O'Brady e Louis Rudd

"Ele é um dos maiores exploradores polares modernos", disse O'Brady em entrevista dias depois de retornar a Punta Arenas, no Chile, o ponto de partida da dupla para a plataforma de gelo de Ronne. "Mas não são jornadas comparáveis, em minha opinião".

Outros apontaram que os estágios finais da rota escolhida por Rudd e O'Brady acompanhavam um passo usado por veículos pesados.

"Eu gostaria que essas pessoas estivessem lá", disse Rudd. "Não é uma estrada de maneira alguma. Tentar dizer que foi fácil, que só esquiamos por uma estrada, é errado. É meio decepcionante. É uma vergonha que eles não tenham dito 'parabéns, rapazes, pelo grande esforço e pela jornada dura'".

Os dois tinham muito mais a dizer sobre sua aventura. As entrevistas separadas com cada um deles foram condensadas e editadas para fins de clareza.

 

 
Primeiros passos

Louis Rudd: Chegamos e o avião pousou, e eu perguntei a Colin se ele queria desembarcar primeiro. Depois o avião taxiou sobre o gelo por cerca de 1,5 quilômetro, em uma rota paralela à que Colin estava percorrendo. O avião parou e eu desci. Podíamos ver um ao outro claramente, no começo. Lembro que Monica, a piloto, e eu tivemos dificuldade para tirar o pulk do avião; era um peso insano. O trenó afundou na neve macia da plataforma de gelo de Ronne, e pensei comigo mesmo que aquilo era uma loucura.

Colin O'Brady: Há quatro tiras para amarrar o trenó. Quando puxei a primeira delas para apertar, o clipe plástico quebrou. Não tinha nem dado meu primeiro passo e a [palavrão] já estava quebrada. 

Rudd: O avião decolou, e fez um círculo no ar sobre nós, voando baixo; gradualmente, o ruído desapareceu e fiquei contemplando o avião até que ele se tornou só um pontinho preto no ar. Lembro do silêncio pesado, e do frio intenso.

O'Brady: No primeiro dia, eu estava caminhando há duas horas. Via Lou, lá longe, indo um pouco mais rápido do que eu, mas àquela altura eu não estava vendo a coisa como corrida. Eu não sabia se seria capaz de arrastar o trenó através da Antártida. Não sabia se conseguiria continuar a arrastá-lo por mais uma hora. Liguei para Jenna [sua mulher e administradora da expedição, Jenna Besaw], chorando. E ela perguntou onde eu estava. "Só avancei três quilômetros desde o local de pouso. Estou a 800 metros de meu primeiro marco de rota. Será que devo acampar aqui mesmo?" E o que ela disse foi realmente crucial: "Chegue ao seu primeiro marco. Você sentirá que o dia foi uma vitória, assim".

 Rudd assume a liderança, inicialmente

O'Brady: Os primeiros quatro dias foram brutais. O corpo não está acostumado. Eu tinha assaduras, bolhas, minhas costas doíam. Ajeitar tudo e prosseguir estava sendo um desafio para mim. Via Lou à minha frente. É difícil julgar distâncias, por lá. Eu não sabia se ele estava uma milha à frente ou 10 milhas. Mas o via, bem longe.

Rudd: No quarto dia, a superfície estava ótima, e eu avancei cerca de 28 quilômetros, o que eu jamais esperava conseguir, com aquele peso todo. Concluí o dia pensando que Colin de jeito nenhum conseguiria me acompanhar, àquela altura. Minha ideia era a de que eu tinha conseguido uma imensa vantagem com relação a ele.

O'Brady recupera o atraso e ultrapassa

O'Brady: No final do quinto dia, depois de 10 horas marchando, vi a barraca dele e pensei que [Rudd] estava bem perto. Acampei a 15 minutos da barraca dele naquela noite. Na manhã do sexto dia, comecei a esquiar na direção da barraca. Ele deve ter me ouvido passar, e colocou a cabeça para fora da barraca e acenou. Respondi ao aceno e segui em frente.

Rudd: Quando eu enfim comecei o dia, ele estava cerca de 800 metros à frente, mas não demorei a recuperar a distância. Eu continuava muito confiante em que estava viajando mais rápido, e ele parecia encurvado, como se estivesse se sacrificando; eu me senti mais relaxado, estava mais ereto. Foi bom para minha confiança. Um quilômetro nos separava, mas continuamos bem próximos um do outro, ao longo do sétimo dia.

O'Brady: No final daquele dia, eu o vi parar para montar a barraca, e prossegui por mais uma hora. Minha ideia era que não queria acordar perto dele de novo. Pensei que seria bom ter alguma separação. Com isso, fiz uma vantagem de cerca de três quilômetros sobre ele, no final do dia.

Rudd : Ele acordou ​super cedo e, quando saí da barraca ele era só um pontinho lá adiante.

Rudd corre o risco de um desastre

A cerca de meio caminho do Polo Sul, Rudd encontrou neve macia em seu caminho, e arrastar o trenó se tornou muito difícil. Por isso, decidiu dividir a carga, deixando metade dela para trás, carregando a segunda metade com ele, e depois esquiar de volta para apanhar os itens restantes. A operação funcionou bem na primeira tentativa, e portanto ele decidiu repeti-la. Mas na segunda vez, ele se esqueceu de marcar o local em que deixou a carga por meio de coordenadas de GPS. Foi um erro muito grave. Rudd quase perdeu itens essenciais, em uma tempestade repentina.

Rudd: Tinha ouvido outros exploradores polares falando sobre dividir a carga, como opção. Achei que valia a pena tentar. Eu deveria ter deixado a barraca e levado o saco de dormir, ou vice-versa, para que se perdesse a barraca eu tivesse o saco de dormir, ou o oposto. Mas deixei os dois, marquei a posição no GPS e com um esqui reserva, e segui adiante carregando 40 dias de comida, um telefone via satélite e um casaco, no pulk.

A visibilidade estava boa, àquela altura. Cerca de 1,5 quilômetro. O pulk estava confortável. Com meia carga, era fácil avançar rápido, e não demorei a percorrer três quilômetros. Quando voltei para apanhar o restante da carga, tudo correu bem. Fui em frente.

E aí repeti a manobra.

O tempo começou a piorar. O vento estava chegando a 60 km/h ou 70 km/h, a visibilidade estava caindo muito. Voltei a parar depois de três quilômetros. Da primeira vez, eu simplesmente segui as trilhas dos esquis para voltar. Mas da segunda, o vento e a neve haviam ocultado as trilhas. Comecei a procurar literalmente de joelhos, pensando que era inacreditável que eu não conseguisse ver as trilhas. Fiquei espantado por elas terem desaparecido tão rápido.

Não consegui reencontrar minha trilha. Segui a direção pela bússola. A visibilidade tinha caído para 10 metros. Pensei que as coisas tinham ficado bem perigosas. Eu estava sem tenda, sem saco de dormir. Só tinha um casaco e a comida, e o telefone via satélite, mas ninguém teria como me resgatar, naquelas condições. Aquele tipo de clima podia durar dois dias.

Sem a barraca e o saco de dormir, eu estava em situação imediata de sobrevivência, e estava consciente de que o vento era muito forte. Eu havia marcado o local da carga com um esqui, mas o vento poderia tê-lo derrubado, e a carga toda talvez estivesse soterrada. Demorei muito para percorrer os três quilômetros, olhando tudo com atenção. Quase passei pelo local, o que teria sido fatal, mas por pura sorte virei minha cabeça na direção de uma brecha na cortina de neve, e vi uma forma escura. Virei-me na hora, esquiei por cerca de 200 metros, e literalmente tropecei na carga. Que alívio.

Se você vai atravessar a Antártida esquiando, leve esquis adicionais

O'Brady: Uma coisa que acho que [Rudd] fez de um jeito mais inteligente –e uma vez mais, isso se baseia nas experiências dele– foi que ele levou dois pares de esquis. Eu não tinha esquis adicionais, mas ele tinha peles longas em um par de esquis e peles curtas no segundo. Quando ele queria trocar de pele curta para pele longa, era simples, enquanto eu tinha de literalmente descolar as peles, substituir pelas outras e colá-las de novo. Só que quando você tenta fazer isso em meio a uma nevasca na Antártida, a -31°C, com sensação térmica de -57°C, e a neve voa por todo lado... A substituição não funciona. 

Assim, no 27º dia, tentei mudar as peles dos meus esquis em meio a uma tempestade e não consegui colar nem as longas e nem as curtas, o que quer dizer que não tinha como puxar o trenó. Montei a barraca depois de avançar apenas 5,5 quilômetros. Eram duas da tarde, e decidi que dedicaria o resto do dia a descongelar as peles, e depois recolocá-las nos esquis para a manhã seguinte. Lou fez 24 quilômetros naquele dia. Eu tinha dois dias de vantagem, mas se você não se movimenta, não vai manter a liderança.

A chegada

O'Brady : Cheguei no dia 26, depois de uma puxada final de 32 horas, e parei literalmente em cima do meu último marco de rota, pensando: "vou montar a barraca e dormir". A comida estava no fim, e dois dias mais tarde tinha praticamente acabado. Foi quando Lou chegou.

Rudd: Colin obviamente estava lá há um par de dias, e minha expectativa era de encontrar o Twin Otter (avião) me esperando. Nada de avião. Liguei na hora para a Antarctic Logistics & Expeditions (ALE), e eles disseram que não podiam voar por causa do nevoeiro. Estavam esperando uma janela de tempo melhor em 31 de dezembro, ou seja, dali a três dias. Fiquei frustrado. Colin também. Ele estava com pouca comida, e por isso lhe dei algumas das minhas rações congeladas.

O'Brady: Quando os caras chegaram, eu estava lá há quatro dias, Lou há dois. A comida estava acabando. Abrimos grandes sorrisos. Eles trouxeram uma garrafa de champanhe.

Rudd: Eram 23h ou 0h, quando pousamos na UG [a sigla em inglês para Geleira Union], mas o pessoal da ALE e seus clientes estavam esperando acordados, e fomos aplaudidos, abraçados e cumprimentados quando descemos do avião. Eles haviam preparado um jantar especial para mim e para Colin, e por isso nos acomodamos na cozinha para uma ótima refeição. E todo o vinho e cerveja que quiséssemos.

Saudades da Antártida

O'Brady: A Antártida é a última das grandes regiões selvagens. Não há coisa alguma como ela no planeta que seja literalmente intocada, hoje em dia.

Rudd: Eu genuinamente amo aquele lugar. É difícil, e pode ser brutal. Por boa parte do tempo, quando você está lá, a vontade é estar em outro lugar, mas terei saudade, e pensarei muito sobre a Antártida. A grande rainha branca.

Tradução Paulo Migliacci

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