Bloqueio faz Qatar jogar com torcida mínima na Copa da Ásia

Torneio é disputado nos Emirados Árabes, que integram grupo liderado pela Arábia Saudita

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tariq Panja
Abu Dhabi | The New York Times

O atacante qatariano Almoez Ali tornou-se parte de um pequeno grupo de detentores de recordes da Copa da Ásia, na semana passada, ao ser o quarto jogador na história do torneio a marcar quatro gols em uma partida.

Sua façanha, em um jogo no qual a seleção de seu país esmagou a Coreia do Norte por 6 a 0, foi saudada por apenas uma torcedora carregando as cores do emirado do Golfo Pérsico.

Ou seja, um torcedor a mais do que os dirigentes da equipe esperavam.

Isso porque a Copa da Ásia está sendo disputada este mês nos Emirados Árabes Unidos (EAU), um dos principais participantes do bloqueio liderado pela Arábia Saudita para punir o Qatar, em vigor desde 2017, e que já causou inconveniências para os dirigentes qatarianos, jornalistas qatarianos e, evidentemente, para os torcedores qatarianos visitantes —cuja presença minúscula serve como prova.

O espectro da disputa política criou um clima surreal nas partidas do Qatar, que deve se repetir no duelo entre a seleção do país e a da Arábia Saudita, no estádio esportivo da cidade de Zayed, nesta quinta-feira (17).

Jogadores do Qatar comemoram gol na goleada sobre a Coreia do Norte
Jogadores do Qatar comemoram gol na goleada sobre a Coreia do Norte - Giuseppe Cacace - 13.jan.19/AFP

Por conta das implicações geopolíticas, a partida pode ser uma das mais assistidas do torneio, embora ela não deva contar com muitos, se algum, qatarianos nas arquibancadas. O público oficial do jogo entre Qatar e Coreia do Norte no domingo, em El Ain, foi de 452 pessoas, embora diversos presentes tenham dito que na verdade o total de espectadores girava em torno de 100.

Públicos pequenos vêm sendo frequentes nas duas primeiras semanas do mais importante campeonato de futebol asiático.

A única torcedora a desfraldar a bandeira vermelha do Qatar no domingo era uma sul-coreana que veio de seu país para torcer pelo Qatar, de acordo com representantes qatarianos. Dois outros homens não identificados estavam sentados por perto, com uma bandeira do Qatar diante deles —um dos raros traços coloridos em mar de assentos brancos vazios. O público só escapou de bater um recorde negativo porque a delegação da Coreia do Norte trouxe com ela dois ônibus de torcedores.

Torcedores da Coreia do Norte no jogo contra a seleção do Qatar na Copa da Ásia
Torcedores da Coreia do Norte no jogo contra a seleção do Qatar na Copa da Ásia - Giusepe Cacace - 13.jan.19/AFP

A atmosfera soporífica dará lugar a algo muito mais político quando Qatar e Arábia Saudita se enfrentarem para decidir o vencedor do grupo E. Os países não se encontram em um campo de futebol desde que as relações diplomáticas entre eles foram rompidas 18 meses atrás, e o local do jogo, nos EAU, cria ainda mais tensão.

“É quase tão difícil de imaginar quanto a seleção dos Estados Unidos jogando contra o Irã em Teerã”, disse Neil Quilliam, pesquisador sênior no programa da África do Norte e Oriente Médio da Chatham House, uma instituição de pesquisa sobre assuntos internacionais, em Londres. “No Qatar, com certeza muita gente estará com medo, torcendo pelo retorno seguro de seus jogadores”.

Grandes e pequenas intrigas políticas não são novidade na Copa da Ásia. Na terça-feira, a Palestina enfrentou a Jordânia, que abriga refugiados palestinos há meio século. Um dia dia depois, o Irã enfrentou o Iraque. O Iêmen, que está à beira de uma onda de fome e sofre uma ofensiva liderada pela Arábia Saudita contra os rebeldes houthis, está entre as seleções que chegaram pela primeira vez ao torneio nesta edição.

Mas a maior crise do torneio deste ano é o bloqueio continuado ao Qatar. Os EAU e a Arábia Saudita estão unidos em sua oposição ao Qatar, que acusam de financiar o terrorismo, interferir em seus assuntos internos e de se aproximar demais do Irã. Os dois países se irritaram especialmente com o apoio do Qatar a diversos ativistas do mundo árabe, ente os quais movimentos políticos islâmicos que os demais monarcas do Golfo Pérsico veem como ameaça ao seu poder.

Os líderes do Qatar negam a acusação de interferência e a de financiamento do terrorismo, argumentando que é a independência de seu país que irrita os vizinhos. Mas os efeitos do bloqueio sobre o torneio não são difíceis de perceber.

Saoud al-Mohannadi, qatariano e o executivo da Confederação Asiática de Futebol que responde pelo torneio, foi inicialmente impedido de viajar aos EAU, pouco antes da competição. Inicialmente impedido de embarcar em um voo no Omã, ele foi autorizado a entrar no país um dia mais tarde.

Cinco jornalistas credenciados para cobrir o evento pela confederação não tiveram essa sorte: sua entrada foi recusada, ainda que um fotógrafo tenha sido admitido. Há 47 jornalistas de veículos sauditas de mídia impressa credenciados para o evento.

Os organizadores locais e o Conselho do Esporte de Abu Dhabi se recusaram a conceder entrevistas. Nenhuma das duas organizações respondeu a perguntas relacionadas ao torneio encaminhadas por email.

Um fator que complica ainda mais as coisas é o contrato de transmissão televisiva da Copa da Ásia. A beIN Sports, do Qatar, detém os direitos de transmissão do evento, mas diversos dos principais hotéis, entre os quais o Fairmont, onde a delegação oficial da confederação está hospedada, e os hotéis adjacentes aos estádios se recusam a oferecer os canais de TV paga da beIN.

Desde o começo da crise, as transmissões da beIN —cujos direitos exclusivos a empresa adquiriu por centenas de milhões de dólares—  vêm sendo pirateadas por uma entidade conhecida como beoutQ, que segundo o Qatar tem sede na Arábia Saudita. Como aconteceu na Copa do Mundo do ano passado, a beoutQ está transmitindo a Copa da Ásia na íntegra, sobrepondo seu logotipo ao da beIN.

Os organizadores da Copa Ásia divulgaram comunicados nos quais expressam sua frustração e ameaçaram recorrer à Justiça, sem grande efeito.

No Bahrein, o xeque Nasser bin Hamad al-Khalifa, filho do soberano do emirado, postou um vídeo nos Instagram esta semana mostrando sua reação à vitória de seu país contra a Índia, com um gol nos minutos finais. E escolheu fazê-lo via beoutQ, como o logotipo na tela deixava claro. O presidente da Confederação Asiática de Futebol é membro da família real do Bahrein.

Na véspera do jogo, a beIN lançou um site que expunha provas contra o canal pirata, que ela descreve como uma operação apoiada pela Arábia Saudita.

A disputa mais ampla também é visível dentro dos estádios. Em diversos deles, a parceria entre a Arábia Saudita e os EAU em oposição ao Qatar é visível em faixas que mostram as bandeiras dos dois países e a imagem de um aperto de mãos.

Não há como prever o que acontecerá no estádio de Zayed nesta quinta-feira. Em um jogo sub-19 entre os EAU e o Qatar, em outubro, o capitão dos emirados se recusou a apertar a mão de seu colega qatariano no cara ou coroa de abertura da partida.

Dirigentes e jogadores qatarianos tentam minimizar a nuvem política que pende sobre sua presença. Dizem que seu foco é melhorar o desempenho do time antes da Copa do Mundo masculina de 2022, que acontecerá na Qatar.

Na terça-feira, os jogadores qatarianos pareciam bem humorados, correndo para treinar em um campo local de Abu Dhabi, no fim da tarde. Eles brincavam e trocavam provocações enquanto a comissão técnica espanhola da seleção os dirigia nos treinamentos.

Exceto a ausência de torcedores em suas partidas, a seleção não enfrentou problemas com a confederação e os organizadores locais, de acordo com um porta-voz da federação de futebol do Qatar, Ali al-Salat. Mas os jogadores foram instruídos a evitar discussões políticas, antes do jogo contra a Arábia Saudita.

“Você pode ver a partida como especial, mas não é tão especial para nós”, disse o meio-campista qatariano Salem al Hajri, em uma curta entrevista enquanto se preparava para o treino da terça-feira.

Perguntados sobre as implicações políticas da partida, o capitão e o treinador da seleção saudita preferiram não responder, dizendo que cabia a outros pensar sobre isso.

“Estamos pensando exclusivamente na parte esportiva do jogo de amanhã”, disse Juan Antônio Pizzi, o treinador argentino da Arábia Saudita. “Quaisquer que sejam as questões adicionais, não temos o direito de falar sobre as coisas fora do campo”.

Hajri e seus colegas de time no Qatar contam com pelo menos um torcedor garantido. A mulher sul-coreana que foi aos dois primeiros jogos da equipe, Mary Lee, confirmou sua presença. O relacionamento entre Lee e a seleção qatariana é curioso. Salat diz que ela tem ligações com a embaixada qatariana na Coreia do Sul.

“Apreciamos seu apoio porque ela é a única torcedora que porta a bandeira do Qatar nos EAU”, disse Salat. Em circunstâncias normais, ela teria a companhia de pelo menos dois mil torcedores qatarianos, ele disse, mas os voos regulares entre Doha, a capital do Qatar, e Abu Dhabi foram suspensos por conta do bloqueio.

Os qatarianos agora precisam de licença especial e têm de passar por duas verificações antes de viajar aos EAU, onde muitos deles têm parentes. Mas sem voos diretos entre os dois países, os torcedores interessados em assistir à Copa da Ásia seriam forçados a fazê-lo com escala em um terceiro país — normalmente, Omã ou Kuwait—, como a seleção do Qatar fez para chegar a Abu Dhabi.

O xeque Hamad bin Khalifa bin Ahmed al-Thani, membro da família real qatariana e presidente da federação de futebol de seu país, está instalado no Omã e vem de avião aos EAU para as partidas da seleção.

Enquanto isso, a federação saudita de futebol obteve milhares de ingressos para os jogos de sua seleção, mas a presença dos torcedores sauditas não fez muito efeito em um torneio no qual o número de espectadores é mínimo.

A falta de torcedores criou uma atmosfera estranha nos estádios. A música alta ecoa em áreas vazias, enquanto animadores de torcida estimulam os poucos presentes a “fazer barulho”.

Apesar de ingressos estarem sendo oferecidos a apenas US$ 7, até mesmo os torcedores neutros escolheram não assistir aos jogos. Diversos trabalhadores imigrantes —em Abu Dhabi, eles superam em número os cidadãos locais— disseram que o grande obstáculo não era o preço dos ingressos ou a intriga geopolítica, mas algo muito mais básico. Como disse um taxista nigeriano, ele está ocupado demais.
“Não paro de trabalhar”, afirmou.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.