Cariocas sucumbem após suor virar gelo em ultramaratona nos EUA

Corredores ficaram pelo caminho na Arrowhead 135, mas fazem planos para 2020

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Ultramaratonista com gelo no rosto durante a prova Arrowhead, quando os competidores podem enfrentar temperaturas inferiores a -50 ºC  

Ultramaratonista com gelo no rosto durante a prova Arrowhead, quando os competidores podem enfrentar temperaturas inferiores a -50 ºC   Divulgação

São Paulo

Sair do verão do Rio de Janeiro para uma das maiores ondas de frio já registradas nos Estados Unidos seria um desafio para qualquer pessoa. Ele se torna ainda maior quando o objetivo da viagem é correr uma das mais temidas ultramaratonas do mundo.

Márcio Villar, 52, e Diego Costa, 35, deixaram a capital fluminense no fim de janeiro rumo à fronteira dos EUA com o Canadá, no estado de Minnesota, para tentar completar os 217 km da Arrowhead 135 —o número faz referência à quantidade de milhas que os atletas devem percorrer.

Eles sabiam que teriam que enfrentar muito frio e neve, mas não podiam prever que a prova coincidiria com a ocorrência do vórtex polar, frio intenso causado por ciclones formados nos polos e que ganham força no inverno.

A preparação dos cariocas para a ultramaratona gelada incluiu até algumas sessões de treino dentro de um frigorífico em Niterói, onde eles testavam a resistência das roupas que levariam, praticavam a melhor maneira de entrar no saco de dormir e simulavam trotes em um espaço de 10 m².

A dupla chegou com dez dias de antecedência a International Falls, cidade de onde seria dada a largada para a prova no dia 28 de janeiro.

Diego Costa, que nunca havia visto neve antes, aproveitou uma das noites para treinar o processo de entrada no saco de dormir em condições reais.

O exercício é importante porque quanto mais rápido o corredor conseguir se proteger, menos fica sujeito a congelar do lado de fora.

A tarefa, porém, quase resultou em problemas para a dupla. Quando viu Márcio ao lado de um corpo enrolado sobre o gelo, um policial abordou o brasileiro para saber o que estava acontecendo.

Márcio, então, gritou desesperado para Diego, que teve que se vestir rapidamente e sair de dentro do saco para mostrar que estava vivo e explicar o motivo da cena inusitada.

No momento da largada, os termômetros em International Falls marcavam -26°C, mas o vento derrubava a sensação térmica para algo próximo a -50°C. Foi nessas condições que 62 corredores iniciaram a prova, mas esfriaria ainda mais nas horas seguintes.

O prazo para completar os 217 km é de 60 horas, e são previstos três pontos de parada e assistência pelo caminho. Os atletas correm puxando um trenó de ao menos 20 kg com roupas e alimentos. Quem desiste no meio da trilha precisa esperar por um snowmobile para ser resgatado.

Diego, que trabalha na área de gestão ambiental, começou a correr em 2008 e ouviu falar da Arrowhead pela primeira vez no ano seguinte, justamente em uma palestra de Márcio, experiente ultramaratonista que tinha acabado de completar a prova nos EUA pela primeira vez.

A primeira ultramaratona de Diego foi em 2012. Desde então, ele não parou mais, até que neste ano resolveu fazer sua estreia na Arrowhead.

O brasileiro percorreu cerca de 55 km em 12 horas, mas quando chegou no primeiro ponto de parada sabia que precisaria tomar o que chamou de decisão mais difícil da sua carreira de atleta amador.

O controle da temperatura do corpo é uma das tarefas mais complicadas para quem corre nessas condições, já que o suor pode virar gelo rapidamente. Foi o que aconteceu com Diego. 

Sua jaqueta estava retendo o calor, e ele não conseguia abri-la porque o zíper também já estava congelado.

“A minha segunda pele virou uma armadura de gelo. Eu estava com hipotermia. O suporte da prova veio e arrancou o gelo que estava colado no peito e nas costas”, afirma.

Quinze minutos depois, após tomar chocolate quente e comer um pão com linguiça, ele conta que a tremedeira já havia passado. Era o momento de decidir se iria voltar a correr, mas a perspectiva de a temperatura cair ainda mais durante a madrugada não lhe deu outra opção.

“Eu tinha prometido para minha esposa e minha filha que não iria dar uma de super-homem. Se eu voltasse, a probabilidade de congelar de novo seria grande, e só vinha a imagem da minha filha. Prometi a ela que voltaria inteiro, então decidi abandonar”, diz.

O diretor da prova classificou a decisão de Diego como a mais inteligente da vida dele.

Márcio, com a experiência de quem já completou a Arrowhead duas vezes, seguiu em frente. O objetivo era ousado: ser o primeiro atleta a dobrar a distância da prova e fazer 434 km, em vez de 217. Mas ele também sucumbiu ao vórtex polar, após correr cerca de metade do percurso.

“No meio da madrugada veio a nevasca, com aquela friaca. Não tinha o que fazer, era pensar em salvar a vida. Estavam passando as motos de resgate e, na mesma hora, fiz sinal e subi, senão teria que entrar no saco de dormir e esperar quatro horas até alguém me resgatar”, relata.

A experiência de já ter ficado com o corpo congelado fez a diferença para ele saber que atitude deveria tomar.

“A primeira vez que eu trouxe o troféu de lá, cheguei a congelar tudo, minha mão não mexia mais, não conseguia entrar dentro do saco de dormir para esperar o resgate. Sorte que outro atleta me socorreu e me enfiou no saco. Eu esperei a temperatura do corpo voltar ao normal, ainda voltei para a prova e cheguei em quinto lugar”, relembra.

Sem alcançar os objetivos, seria esperado que os cariocas não levassem boas recordações da Arrowhead 2019, mas eles revelam o contrário.

“Mesmo tendo falhado, nos trataram como heróis. Fui a uma missa lá e o padre, que foi atleta, me usou de exemplo. Disse que eu vinha de um país com quase 100 graus de diferença e corri 40 milhas, então a gente tem que acreditar que pode. Para mim foi um pouco de conforto, porque fiquei realmente mal de ter abandonado”, afirma Diego.

Já Márcio diz ter recuperado durante a competição o espírito de preocupação e ajuda próprios da ultramaratona.

“Era assim no Brasil, mas de um tempo para cá todo mundo quer ser campeão, acabou o espírito de união. Lá eu resgatei isso. Só nós éramos do calor. A preocupação das pessoas com a gente foi grande. Passaram dicas de sites que vendem material mais moderno que os nossos e vão dar curso de sobrevivência em ambientes extremos negativos.”

Só 13 dos 64 corredores completaram a prova deste ano. A expectativa dos brasileiros é voltar em 2020, tanto que deixaram equipamentos com um conhecido para facilitar o processo. Para o ano que vem eles esperam estar mais preparados e, de preferência, não reencontrar o vórtex polar.

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