Kelvy saiu da Bahia, treinou boxe na favela e virou campeão aos 14

Jovem baiano teve a bênção da mãe para treinar e conquistou título paulista

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Pedro Ribeiro Nogueira
São Paulo

Kelvy Alecrim Trindade, 14, tem um jeito calmo. Sentado na cama em uma casa de alvenaria na Favela do Moinho, no centro de São Paulo, ele brinca com luvas de boxe.

Em poucas horas, Kelvy disputaria sua segunda luta oficial, pelo título de campeão paulista de boxe na categoria infantil, no Centro Olímpico.

O barulho em um ringue é alto, mesmo num torneio pequeno, disputado por crianças e adolescentes. A luta de Kelvy é a terceira do dia, contra Adson Conceição, garoto que assim como ele veio da Bahia.

Gritos e barulhos de movimentos e golpes secos preenchem o ar. Kelvy leva a primeira pancada. A expressão é de quem vai chorar, mas ele se mantém firme, projeta passos rápidos no tablado e, enfim, consegue encaixar sequências contra o seu adversário, menor, mas mais robusto.

Kelvy saiu da cidade baiana de Presidente Dutra há dois anos. Um dia, passou em frente aos treinos de boxe que começavam a ser realizados no Moinho, última favela do centro de São Paulo. Achou a luta “bonita” e recebeu a bênção da mãe para treinar.

As aulas, promovidas no apertado cinema comunitário da favela e que atendem principalmente crianças, eram levadas adiante pelo projeto Boxe Autônomo, iniciativa que percorre ocupações e espaços públicos da cidade.

Conduzido pelos treinadores Breno Macedo, Raphael Piva e Guilherme Miranda, o Boxe Autônomo começou em 2015, no bairro da Liberdade, e chegou à favela do Moinho durante ações de solidariedade a Leandro de Souza Santos, morto por policiais militares em junho de 2017, aos 18 anos, dentro de um barraco.

Hoje, os treinos acontecem em um espaço mais amplo, na Casa do Povo, no Bom Retiro, distante 15 minutos a pé do Moinho. A casa de Kelvy fica ao fim da favela e foi construída por seu padrasto, o porteiro Robenílton Santos, que o acompanha na luta.

“Hoje em dia, para a gente viver em um mundo melhor, pensar nisso, é muito difícil. Então a gente se alegra de ver ele assim”, diz. A área da casa fica do outro lado do muro derrubado por moradores após um incêndio em 2013 e foi o último espaço de expansão da favela, já ocupado.

Apesar de disputas judiciais pelo terreno, a favela sobrevive. É ali que Kelvy diz que gosta de morar e onde recebe desejo de boa sorte dos vizinhos.

O segundo round de três —cada um com um minuto e meio— é de Kelvy. Ele supera o nervosismo e encurrala Adson diversas vezes, com movimentos rápidos e impulsão. Os treinos estão fazendo efeito.

No Centro Olímpico, cercado por quadros dos maiores boxeadores de todos os tempos, como um santuário de boxe, o garoto carrega, segundo Piva, “a força coletiva de seu treinamento” e uma camisa de algodão, remendada por fita adesiva, que traz a inscrição “Boxe Autônomo”.

“O boxe parece algo muito individual, mas é uma experiência coletiva. Ele não sobe lá sozinho. É toda a comunidade dos treinos, as outras crianças”, afirma o treinador.

Do lado de fora está Samuel, 8, chamado de “fiel escudeiro” do boxeador mirim, que sofre e esconde os olhos com as mãos quando as coisas vão mal. Ele é, brincam os treinadores, o assistente psicológico do amigo. Vindo do Maranhão, encontrou em Kelvy um irmão mais velho.

 

O padrasto filma tudo e vibra. A dona de casa Quédima Alecrim, mãe de Kelvy, ficou em casa com os outros dois filhos e a certeza de que o menino voltaria com a medalha.

Ela preferiu evitar que o primogênito ficasse nervoso com sua presença. Segundo Quédima, ele se tornou uma criança menos agressiva e mais disciplinada, treinando cinco vezes por semana e atento à própria alimentação para não passar do peso.

“Ele é muito talentoso, tem uma grande consciência corporal da capoeira que praticava na Bahia”, diz Piva.

Segundo Macedo, o boxe é um esporte de combate que reflete muitos traços retrógrados. Foi a última modalidade a ser disputada também por mulheres nos Jogos Olímpicos, a partir de 2012, em Londres.

Mas também traz exemplos significativos de luta por justiça, personificados por boxeadores como Muhammad Ali, lembra o treinador.

“Em termos práticos, além da nossa ligação transversal com a luta por moradia, pelo direito de viver, o que nos diferencia de outras academias é que tentamos criar espaços livres de opressões, de discriminações das mais variadas, desde segregação econômica, pois a nossa mensalidade é de R$ 30 por mês, até não permitir xingamentos machistas, racistas ou homofóbicos nos nossos treinos”, diz Macedo.

Ao fim do disputado terceiro round, dissipada a tensão de garotos tão parecidos em seus objetivos, o juiz segura o braço das duas crianças.

Em frente a Éder Jofre, que foi homenageado no evento, o árbitro anuncia que o campeão do Campeonato Paulista de Boxe Infantil Masculino e Feminino da Federação de Boxe de São Paulo (Febesp), na categoria até 42 quilos, por decisão dividida dos juízes, é Kelvy Alecrim Trindade.

Orgulhoso com sua medalha e recebendo abraços, acompanhados de gritos e lágrimas de Samuel, Guilherme, Raphael, Robenílton e de sua pequena torcida, Kelvy, enfim, chora.

Colaboraram Caio Castor e Tuane Fernandes

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