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Visão que americanos têm de atletas e intelectuais diz muito sobre o país

Ao mesmo tempo em que abraçamos o esporte, últimos anos geraram aversão à ciência

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Kareem Abdul-Jabbar
Los Angeles | The Guardian

Em 19 de abril de 1980, mais de 50 mil parisienses saíram às ruas para lamentar a perda de um compatriota. Era um famoso astro pop, um político muito querido ou um atleta nacionalmente famoso?

Não, tratava-se do funeral de Jean-Paul Sartre, o filósofo existencialista e ganhador do prêmio Nobel de literatura (que ele recusou, em companhia dos US$ 500 mil que acompanhavam a comenda, por medo de que isso comprometesse seu pensamento independente.)

Nos Estados Unidos, uma exibição de pesar e afeto público dessa ordem em geral fica reservada a ícones da cultura pop, e não a intelectuais intransigentes. Talvez seja hora de revisar essa prioridade.

Não consigo imaginar a morte de um filósofo ou literato americano que atraísse multidão comparável. Mas, quando nossos ídolos esportivos se vão, comparecemos em massa: o funeral de Babe Ruth atraiu 150 mil pessoas, e o de Muhammad Ali, 100 mil. Nos dois casos, merecidamente.

Por outro lado, quantas pessoas foram ao funeral, em 1996, do poeta laureado dos Estados Unidos Joseph Brodsky, imigrante que ganhou o Nobel de literatura em 1987? Não sei a resposta, porque a informação simplesmente não está disponível.

Multidão faz procissão em homenagem a Muhammad Ali, em Louisville - Adrees Latif - 10.jun.16/Reuters

A maioria de nós é capaz de citar um filósofo ou autor literário influente americano com a mesma facilidade com que citamos uma das Kardashian? Se a resposta for não, a reação inicial deveria ser um leve sentimento de vergonha (e talvez uma busca rápida no Google), mas o mais provável seria um muxoxo, acompanhado por um petulante "e quem quer saber?".

No entanto, essa tendência a desdenhar a pergunta instantaneamente reflete uma tendência perturbadora de anti-intelectualismo preguiçoso e arrogante, que tem consequências muito reais e muito perigosas para a sociedade americana.

A diferença na maneira pela qual os americanos encaram os atletas, comparados aos "intelectuais", é uma boa referência sobre a maneira pela qual nos vemos. Uma estatística aponta que 93% dos homens assistem a esportes, e outra que cerca de 60% dos americanos se consideram fãs do esporte. Sou um deles. Agradeço pelo amor dos americanos ao esporte, amor que compartilho como grande fã do beisebol e do basquete.

O esporte foi incorporado pela nossa sociedade como uma forma de atividade de saúde pessoal e como ferramenta educativa para ensinar valores morais como o espírito esportivo, a disciplina e o trabalho de equipe.

Ainda mais importante, os atletas ficam abaixo apenas dos pais como exemplos para as crianças. Embora isso coloque grande pressão sobre os atletas, alguns dos quais muito jovens, muitos deles se esforçam por cumprir essa responsabilidade.

Ao mesmo tempo em que abraçamos o esporte, os últimos anos vieram a produzir uma ascensão do anti-intelectualismo, a começar por uma aversão aos fatos, à ciência e à lógica. Os adversários da vacinação, aqueles que negam a mudança do clima e até os proponentes da ideia de que a Terra é plana estão em ascensão.

Parte do motivo para isso é a promoção do raciocínio confuso como uma afirmação política positiva. Todas aquelas pessoas que foram ensinadas na escola que falta qualquer base às suas convicções e que suas opiniões estão repletas de falácias lógicas agora podem se unir na ignorância compartilhada, mas disfarçada em conservadorismo. E, unidas, elas podem expressar seu desprezo pelos pensadores da "elite".

Kareem Abdul-Jabbar ergue a taça que conquistou em 1971 na NBA - Michael McLoone - 14.abr.19/USA Today Sports

O presidente Trump é a figura de proa na celebração do pensamento irracional como ato de patriotismo. Ele é o sujeito que incita as massas na taverna, instigando um frenesi que leva a linchamentos. A cada vez que acontece uma tempestade de neve, ele comenta que isso é prova de que o aquecimento global não existe. E continua a fazê-lo ainda que os cientistas especializados expliquem que existe uma vasta diferença entre o mau tempo e o clima em longo prazo.

Da mesma forma que suas explicações sobre o "carvão limpo" mostram completa falta de compreensão sobre o que o termo poderia significar. E há sua absolvição aos crimes de Vladimir Putin, na Rússia, Kim Jong-un, na Coreia do Norte, e Mohammed bin Salman, na Arábia Saudita, a despeito de provas em contrário oferecidas por especialistas em inteligência que fazem parte de seu governo.

Essa forma de pensamento desordenado levou à remoção de proteções da Agência de Proteção Ambiental (EPA), a ataques ao acesso de eleitores às urnas e à corrupção política aberta e impune.

A lição que nossos filhos recebem é: ignore os fatos e as provas caso eles discordem daquilo que os beneficie pessoalmente. Mesmo que isso signifique que todo o mundo mais sofrerá. Ironicamente, essa é a lição oposta ao que o esporte ensina às crianças sobre a necessidade de sacrifício para o bem do time.

Essa é a filosofia dos adversários da vacinação, que justificam sua tolice recorrendo a falsa ciência e a médicos desacreditados. De repente, eles sabem mais que os cientistas que pesquisam o assunto há anos, mais que as estatísticas que demonstram claramente que o sarampo havia sido praticamente eliminado até que as ações deles permitiram que voltasse a se espalhar.

O sarampo agora está em alta e mata pessoas em todo o mundo. Os médicos afirmam que, se a tendência atual persistir, 2019 pode produzir o pior surto de sarampo em décadas nos Estados Unidos. Qual é o critério dessas pessoas para rejeitar ou aceitar as opiniões médicas? Será que elas ficam olhando por sobre os ombros de um cirurgião, durante a cirurgia cerebral de alguém que lhes seja próximo, e instruem o médico sobre o que fazer?

Devemos manter uma atitude de ceticismo saudável com relação a especialistas, porque as provas apontam que eles nem sempre têm razão. Mas ceticismo é diferente de acreditar em teorias de conspiração absurdas. Ceticismo significa exigir provas obtidas com o uso do método científico (a atitude que permitiu que surgisse o Iluminismo).

Em lugar disso, temos o que os psicólogos definem como Efeito Dunning-Kruger, sob o qual pessoas de baixo conhecimento supõem que suas opiniões são superiores às dos especialistas. Elas gostam de se vangloriar de seu "senso comum" inato, que ao longo da história sempre provou ser o pior tipo de senso.

Pior: porque rejeitam a lógica, os políticos dirigem a elas uma barragem constante de asneiras emocionais, com o objetivo de inflar seus egos sem desafiar suas mentes. As pessoas são iludidas e votam da maneira que lhes é ordenado, mas pensando que são independentes.

Donald Trump, para Kareem, "é a figura de proa na celebração do pensamento irracional" - Ting Shen - 18.abr.19/Xinhua

Uma cultura pode admirar o físico e o intelectual. As realizações de nossos atletas nos inspiram a forçar os limites daquilo de que nossos corpos são capazes. Agora, somos capazes de correr mais rápido, saltar mais alto, aguentar mais esforço do que imaginávamos no passado. Isso faz com que todos percebamos que dispomos de potencial inexplorado.

Podemos ser igualmente inspirados pelos insights de nossos poetas, pela visão de nossos filósofos, pelos avanços médicos conquistados por nossos cientistas. As duas coisas deveriam nos estimular a buscar a grandeza: tornarmo-nos mais inteligentes e mais fortes.

O problema é que quando uma pessoa média vê um atleta realizar um feito impressionante, existe sempre uma convicção subjacente de que qualquer um poderia fazê-lo, com treino e prática suficientes. A façanha parece estar ao alcance de todos.

Mas, quanto aos feitos intelectuais, algumas pessoas os veem como além de sua compreensão e, portanto, além de seu alcance. Em lugar de inspirar esforços, os feitos intelectuais as levam a cultivar o ressentimento.

É mais fácil estudar estatísticas de beisebol do que ler um artigo sobre o derretimento das calotas polares. E, além disso, existe uma pressão implícita, no segundo caso: se eu aceitar que algo está errado, não deveria fazer alguma coisa a respeito? É mais fácil negar, negar, negar.

Como aqueles cidadãos do "senso comum" que negavam ruidosamente a existência dos germes, os benefícios da penicilina ou as provas quanto ao DNA, esse anti-intelectualismo pode resultar em doença, morte e acorrentamento do progresso social.

Os intelectuais não ajudam sua causa ao tratar com desdém a cultura pop e o esporte, e ao denegrir as grandes realizações nesses dois campos. Nem a cultura intelectual nem a cultura pop são medidas de inteligência, apenas de exposição passada.

Qualquer tentativa de usar uma ou outra como forma de declarar superioridade implícita demonstra completa falta de compreensão sobre o que a arte se esforça por fazer: aproximar-nos uns dos outros ao mostrar que somos todos iguais em nossas necessidades de amar, de sermos amados e de lutarmos por criar um amanhã melhor do que o hoje.

Realizamos isso tudo ao compreender que uma ideia elegante traz elevação semelhante à de uma enterrada no basquete. E que uma jogada que elimina três corredores no beisebol é tão graciosa quanto um arabesco no balé. Desdenhar o atleta ou o intelectual indica que a pessoa que o faz não é digna nem da arte nem do esporte.

Um dos maiores jogadores de basquete da história, Kareem Abdul-Jabbar foi 6 vezes campeão da NBA

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