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Falta de respostas sobre morte de Senna ainda gera perturbação

Acidente fatal em Ímola há 25 anos nunca teve uma explicação definitiva

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São Paulo

​De sua cadeira de rodas, onde estava sentado por causa de um acidente ocorrido em 1980, o ex-piloto suíço Clay Regazzoni cobrou que a FIA (Federação Internacional de Automobilismo) fosse "criminalmente responsabilizada" pela batida fatal do austríaco Roland Ratzenberger, em 30 de abril de 1994, em Ímola. Um dia depois, exatos 25 anos atrás, o clamor por esclarecimento e punição se tornaria maior em torno de outra morte na mesma pista.

Diante do que ocorreu em 1º de maio, o adeus de Ratzenberger se tornou uma "morte Série B", palavras do irritado legista responsável pela autópsia do jovem de 31 anos. O italiano Pierludovico Ricci, então com 75 anos, foi também um dos que examinaram o corpo de Ayrton Senna e se incomodou com a distinção geral feita entre as vítimas daquele trágico fim de semana na F-1: "Uma vida é uma vida".

Tinha razão o excêntrico professor da Universidade de Bolonha — que, segundo relato da Folha na época, deu aula com o avental ainda sujo de sangue do tricampeão. Mas, se uma vida é uma vida, há na morte ao menos uma diferença entre Ratzenberger e Senna.

A do austríaco foi bem explicada: ele danificou a asa dianteira de sua Simtek em uma saída da pista, no treino de classificação de sábado, e continuou em busca de uma volta rápida. Sem estabilidade, decolou e encontrou o fim da linha no muro da curva Villeneuve.

Já o acidente do brasileiro de 34 anos com sua Williams, um quarto de século depois, não tem explicação definitiva. Há três hipóteses principais (quebra da barra de direção, pneu danificado e erro humano), com fortes partidários de cada uma e nenhuma conclusão universalmente aceita.

Bombeiros trabalham no carro destruído de Ayrton Senna - Acervo - 1º.mai.94/Reuters/Stringer

No campo do Direito, como pedia Clay Regazzoni em relação a Ratzenberger, a Justiça da Itália chegou a apontar um culpado pela morte de Senna: Patrick Head, engenheiro-chefe da escuderia. No entanto, no arrastado processo, que correu em várias instâncias, ele só foi condenado por homicídio em 2007, quando o crime que lhe foi atribuído já havia prescrevido.

O veredicto que responsabilizava Head tomava como verdadeira a teoria do defeito na barra de direção, a coluna que liga o volante à suspensão e às rodas dianteiras. A quebra teria tornado impossível o trabalho do piloto na veloz Tamburello, uma curva leve para a esquerda.

Senna não conseguiu contorná-la. Seu carro se desviou levemente para o lado direito e seguiu praticamente em linha reta rumo a um muro de concreto sem proteção de pneus.

Dados de telemetria mostram que o brasileiro conseguiu reduzir a velocidade de 307 km/h para 220 km/h, sem evitar o pior. No forte impacto, a roda dianteira direita se desprendeu da Williams e um braço de suspensão ligado a ela perfurou o capacete do piloto. A morte foi instantânea.

Senna conduz uma Williams com a qual enfrentava problemas - Acervo/Action Images

A trajetória do veículo na sétima volta daquele Grande Prêmio de San Marino fez com que as primeiras suspeitas fossem de falha na suspensão traseira. Análise posterior do carro mostrou, porém, que era a barra de direção que estava quebrada.

A questão, então, passou a ser: o carro bateu porque a barra de direção se quebrou ou a barra de direção foi quebrada no choque do próprio acidente? Para Enrico Lorenzini, que preparou um relatório de 600 páginas sobre o caso, opção A.

De acordo com o parecer submetido pelo engenheiro da Universidade de Bolonha à Justiça, a barra havia sido "mal soldada" e "não suportou a demanda da corrida". Lorenzini disse suspeitar que a peça tenha se trincado ainda durante a volta de aquecimento.

De fato, um trabalho de solda havia sido feito. Senna não estava satisfeito com a posição da barra de direção em relação a seu assento e pediu que ela fosse ampliada. Para isso, uma barra de diâmetro menor foi juntada à original por fusão metálica.

"Ela [a barra] tinha fendas de desgaste e falharia em algum momento, não há dúvida de que o projeto era ruim", reconheceu Adrian Newey, projetista da Williams em 1994, em entrevista concedida ao jornal inglês The Guardian em 2011.

"No entanto, todas as evidências sugerem que o carro não saiu da pista por uma falha na barra de direção. Se você vê as imagens, especialmente a da câmera do carro do Michael Schumacher, observa que o carro não saiu de frente [instabilidade inicial nas rodas dianteiras]. Ele saiu de traseira [instabilidade inicial nas rodas de trás], o que não é consistente com uma falha na barra de direção", acrescentou Newey.

Patrick Head (esq.) e Adrian Newey (dir.) responderam legalmente pela morte de Senna - Acervo - 15.abr.97/AFP

De acordo com o projetista, "a verdade honesta é que ninguém nunca vai saber exatamente o que ocorreu". Ele tem, porém, um palpite, relacionado a outro acidente — não faltaram batidas naquele fim de semana em Ímola.​

JJ Lehto ficou parado na largada, fracassando na tentativa de mover sua Benetton do quinto lugar no grid. A maior parte dos pilotos evitou o choque com o finlandês, algo que não conseguiu o português Pedro Lamy, da Lotus.

No choque, uma roda voou na direção do público, e nove espectadores se feriram. Houve quatro voltas para que os detritos fossem retirados da pista, com a corrida em bandeira amarela, mas a possibilidade aventada por Newey é que parte dos fragmentos tenha ficado no circuito.

A prova foi reiniciada na sexta volta. A sétima não foi concluída por Senna.

"O carro ficou muito mais baixo naquela segunda volta [após o recomeço], o que é estranho, porque a pressão dos pneus deveria ter subido naquele momento. O que nos leva a crer que o pneu traseiro direito provavelmente se furou em um detrito da pista. Se eu tivesse que escolher uma hipótese mais provável, diria que é essa", disse o projetista daquela Williams.

 

O alemão Michael Schumacher, que vinha atrás do brasileiro com sua Benetton, notou que estava trepidante o carro do primeiro colocado no traiçoeiro trajeto de Ímola, cheio de alterações de velocidade e elevação. Em curvas velozes como a Tamburello, o líder precisava segurar o volante com muito mais força para controlar o veículo.

Ainda assim, Senna conseguia ser Senna. A última volta completa de sua vida foi feita em 1min24s887, superada por apenas dois pilotos até o fim da corrida — o que é extraordinário, já que os pneus estavam frios, e o tanque, cheio de combustível.

Aí entra a outra alternativa considerada plausível: o tricampeão mundial quis tirar tanto daquele problemático carro da Williams que falhou. Ultrapassar o limite não seria um erro inédito na carreira do paulistano, e é essa a teoria defendida pelo britânico Damon Hill, seu último companheiro de equipe.

"Ninguém além do Ayrton Senna e de mim sabe o que era guiar aquele carro, naquela curva, naquela corrida, naquele dia, com pneus frios. Nunca vamos saber o que o Ayrton estava pensando ou o que realmente ocorreu. Estou convencido de que ele cometeu um erro, mas muita gente nunca vai acreditar que ele poderia", escreveu o piloto, em artigo publicado no jornal inglês The Times, em 2004.

O britânico Damon Hill defende a teoria de que Senna falhou - Kimimasa Mayama - 28.out.95/Reuters

Como Newey e Hill, quem apresenta sua opinião sobre o acidente quase sempre acaba usando alguma variação da expressão "nunca vamos saber". Poderia ser diferente, mas as duas caixas pretas do carro, semelhante às existentes nos aviões para gravar informações de bordo, não tiveram seus dados revelados.

No processo conduzido na Justiça italiana, Fabrizio Nosco, comissário técnico da corrida, testemunhou que as peças estavam intactas, "exceto por alguns arranhões". Segundo ele, porém, por ordem da FIA, elas foram entregues à Williams e só chegaram quase um mês depois às autoridades, que relataram conteúdo "totalmente ilegível".

Sem esses detalhes, o que se viu foi um processo legal lento que acabou por causar irritação geral no mundo da F-1. A própria família de Senna se opôs à investigação, e a FIA chegou a ameaçar deixar a Itália sem GPs se alguém fosse considerado culpado.

"Nada de útil saiu desse processo legal. Na verdade, foi um grande obstáculo para qualquer trabalho em segurança, porque, ao apreender o carro e os equipamentos relevantes, eles impediram que a gente os olhasse e jogaram fora o tempo de todos", disse Max Mosley, presidente da FIA de 1993 a 2009.

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Capacete de Senna foi apreendido junto com o carro da Williams - Reprodução/Daily Motion

Foi só em 2002, quase oito anos após o acidente, que o modelo FW16 guiado por Senna foi devolvido à Williams, em estágio avançado de deterioração, e subsequentemente destruído. "Não existe mais. Fim da história", afirmou, em abril daquele ano, o dono da escuderia, Frank Williams.

Pode ter sido o fim da história, mas foi como o final de um filme cheio de pontas soltas. Com uma diferença: apresentar sua teoria sobre o desfecho na saída do cinema chega a ser um exercício prazeroso para os amantes da sétima arte. No caso da morte de Ayrton Senna, a ausência de respostas após 25 anos ainda causa perturbação.
 

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