De Vargas a Bolsonaro, presidentes buscam carona na seleção

Governante atual esteve em jogo do Brasil e fez visita a Neymar em hospital

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Brasília

Presente na partida entre Brasil e Qatar, na quarta-feira (5), em Brasília, Jair Bolsonaro (PSL) não foi o primeiro presidente da República a se aproximar da seleção brasileira. Getúlio Vargas já havia percebido o poder do futebol na época do Estado Novo (1937-1945), e boa parte de seus sucessores procurou se atrelar de alguma forma ao esporte mais popular do país.

Governos à esquerda e à direita repetiram a estratégia e tentaram embarcar especialmente em momentos de festa. Os governantes também sempre foram atraídos pelos craques, motivo pelo qual não chegou a surpreender a tentativa de Bolsonaro de colar sua imagem à de Neymar —que se machucou no jogo de quarta e recebeu a visita do político no hospital.

“O interesse maior deles, sem dúvida, é valer-se da popularidade que esse esporte tomou no Brasil, da concretude que 11 homens vestidos com as cores do país dão à ideia de nação e, sobretudo, do sucesso esportivo obtido pela seleção brasileira em competições internacionais, em especial a Copa do Mundo”, diz o historiador social Marcel Diego Tonini.

“A partir das décadas de 1940, 1950 e 1960, quando o futebol alcança profundamente a alma popular e conquista nossos corações e mentes, de forma irreversível, quase todos os políticos, para não dizer todos, de quase todos os partidos e ideologias, procuram se aproximar do futebol, para usá-lo direta ou indiretamente, no âmbito do prestígio social, do impacto simbólico e da projeção política”, afirma Mauricio Murad, sociólogo do desporto.

Vargas foi o primeiro a fazer disso uma estratégia. Houve presidentes anteriores a ele ligados de alguma forma ao futebol, mas o gaúcho efetivamente fez do esporte uma das plataformas na “formação da grande nação brasileira”, como observa Maurício da Silva Drummond Costa, em texto publicado no livro “Memória Social dos Esportes”.

Getúlio viu na Copa do Mundo de 1938, a primeira transmitida por rádio no país, uma oportunidade. Prometeu uma alta subvenção às despesas da delegação na Europa e fez de sua filha, Alzira, madrinha da equipe nacional, sempre presente em fotos com os jogadores. Afagar o craque também já fazia parte do manual.

“Antes do embarque para a França, a seleção foi recebida pelo presidente da República, que fez questão de cumprimentar os jogadores e deixar clara a importância que o título teria para o futuro da nação. Getúlio Vargas dispensou atenção especial à grande estrela da seleção, Leônidas da Silva”, narra Costa.

O Brasil não ganhou, mas o engajamento da população no Mundial mostrou que o futebol era mesmo um filão a ser explorado politicamente. Quando veio o título, em 1958, na Suécia, já estava claro que o presidente do país não poderia perder a oportunidade de pegar carona no sucesso do escrete.

Juscelino Kubitschek (1956-1961) tem uma imagem célebre na qual aparece ouvindo a final daquela Copa, conquistada com vitória por 5 a 2 sobre os donos da casa, em um grande aparelho de rádio. Durante a filmagem, ele chega a pedir silêncio para acompanhar o jogo com atenção. Na volta dos atletas, ele inaugurou a tradição de os campeões serem recebidos pelo presidente.

O ritual foi mantido por João Goulart (1961-1964), que recebeu Mauro Ramos de Oliveira, Bellini e a taça após o triunfo no Chile, em 1962. Derrubado pelo Golpe de 1964, Jango viu os militares levarem a estratégia a novo patamar, especialmente quando Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) esteve na presidência.

O gaúcho, que se dizia gremista no Rio Grande do Sul e flamenguista no Rio de Janeiro, gostava de se colocar como um apaixonado pelo futebol e frequentar o Maracanã com seu radinho de pilha. Em um momento agudo da ditadura, procurou atrelar o governo ao sucesso da equipe verde-amarela e chegou a dar pitacos na escalação, pedindo a convocação de Dadá Maravilha.

Pelé levanta a Taça Jules Rimet, conquistada no México, ao lado de Emílio Garrastazu Médici
Pelé levanta a Taça Jules Rimet, conquistada no México, ao lado de Emílio Garrastazu Médici - Roberto Stuckert - 23.jun.1970/Folhapress

“O presidente e eu temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos, gremistas, gostamos de futebol. Nem escalo ministério nem ele escala o time”, disse o técnico João Saldanha, opositor do regime militar. Ele acabou sendo substituído por Zagallo, que convocou Dadá, conquistou o tri em 1970, no México, e colocou a seleção nos braços de Médici.

O general posou alegremente ao lado dos campeões e fez parte de uma foto histórica, segurando a taça Jules Rimet com Pelé. Dois dias após a final, os jogadores almoçaram com o presidente no Palácio da Alvorada e ganharam uma caderneta de poupança com um depósito inicial de 25 mil cruzeiros para cada um.

Ainda naquele ano, Pelé foi enviado ao México para inaugurar a Plaza Brasil e escreveu carta a Médici, agradecendo por ter sido escolhido para a “honrosa missão de representar êsse ilustre Govêrno e nossa querida Pátria”. “Se aceitei, foi porque me senti sumamente honrado em representar tanto V.Excia. Como a todos os meus queridos irmãos brasileiros”, disse o camisa 10.

Como se vê, a proximidade com a estrela do time continuou configurando parte importante do roteiro a ser seguido. O problema para Jair Bolsonaro é que Neymar, que vem de uma Copa do Mundo ruim e enfrenta uma acusação de estupro, não goza do prestígio que tinha Pelé há quase 50 anos.

“Por mais que o momento atual do escrete nacional não seja dos mais alvissareiros, o deste governo Jair Bolsonaro é pior, seja do ponto de vista político, seja do econômico”, diz Marcel Diego Tonini. “Com os fatos recentes envolvendo nosso maior craque e com o partido tomado pelo presidente, vamos ver se essa aproximação não lhe causará ainda mais impopularidade.”

Bolsonaro espera receber Neymar e a seleção em outra situação, em 2022, quando estará em seu último ano de mandato e provavelmente em busca da reeleição. Se o Brasil vencer o Mundial do Qatar, certamente não fará mal à imagem do presidente cumprir o protocolo seguido pelos cinco presidentes que viram a seleção ser campeã do mundo.

O presidente Jair Bolsonaro foi à clínica de Brasília onde esteve Neymar após o amistoso contra o Qatar
O presidente Jair Bolsonaro foi à clínica de Brasília onde esteve Neymar após o amistoso contra o Qatar - @jairmessiasbolsonaro no Instagram

Em 1994, foi a vez de Itamar Franco (1992-1994) recepcionar os tetracampeões em Brasília e tirar proveito à sua maneira. De acordo com relato da Folha, “no Palácio do Planalto, um carro de som aproveitava a chegada da seleção para divulgar o Plano Real”. O locutor, segundo a reportagem, “a todo momento, dava explicações sobre a nova moeda do país”.

Coube a Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) receber os pentacampeões de 2002. Na “maior festa de recepção da história em Brasília”, como narrou a Folha, o presidente condecorou os 23 atletas e se divertiu com as atrapalhadas cambalhotas de Vampeta, volante vestido com a camisa do Corinthians, na rampa do palácio.

O paulista chegou a dividir um chimarrão com o técnico Luiz Felipe Scolari e foi o último presidente, até aqui, a celebrar uma conquista da seleção. “A emoção é grande de ver chegarem os jogadores. É muita alegria, porque o povo está feliz”, afirmou ele, bradando que não era uma vitória só dos jogadores: “Vitória do Brasil”.

Seu sucessor, Lula (2003-2010) não teve um título mundial para comemorar, mas se manteve perto do futebol. Sempre ligado ao Corinthians, clube do qual era conselheiro e cujo estádio ajudou a construir, também esteve conectado à seleção e foi decisivo na marcação de um amistoso no Haiti, que recebia missão de paz brasileira.

O pequeno país da América Central vivia situação econômica e social muito difícil, e a seleção local era praticamente inexistente. A partida, chamada de “jogo da paz”, só fazia sentido humanitário, não exatamente esportivo, e o presidente chegou a pedir que os atletas brasileiros, que haviam acabado de conquistar a Copa América de 2004, pegassem leve.

“Você imagina que esses jogadores do Haiti nunca sonharam em jogar com a seleção brasileira”, disse Lula, habilmente unindo o time verde-amarelo e uma questão humanitária para marcar sua presença naquele 6 a 0. “Quem sabe um dia não vejamos uma final de Copa do Mundo entre o Brasil e o Haiti”, sorriu.

Menos alegre foi a incursão no esporte daquela que o sucedeu, Dilma Rousseff (2011-2016). Como chefe de Estado, ela teve a responsabilidade de participar das cerimônias de abertura da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de 2014, ambas realizadas em solo brasileiro.

Em um momento que já era de crise em seu governo, a mineira foi bastante vaiada no estádio Mané Garrincha, em Brasília, a ponto de o então presidente da Fifa, Joseph Blatter, perguntar ao público: “Onde está o respeito e o fair play, por favor?”. Uma constrangida Dilma se limitou a dizer: “Declaro oficialmente aberta a Copa das Confederações Fifa 2013”.

Escaldada, ela não chegou a empunhar o microfone na abertura do Mundial, um ano depois, em São Paulo. Ainda assim, a presidente foi vaiada e xingada em dois momentos no estádio de Itaquera: na hora de sua chegada ao espaço que ocuparia na arena do Corinthians e após a execução do hino nacional.

Bolsonaro, no mesmo Mané Garrincha em que Dilma foi hostilizada, preferiu a discrição. Seu nome não foi anunciado no placar, e ele teve contato apenas com torcedores mais próximos de seu camarote. Foi nas redes sociais que ele procurou se atrelar à seleção e a seu principal jogador, publicando foto da visita a Neymar no hospital.

Vargas, Kubitschek e Médici não usavam o Twitter, mas o conceito é o mesmo.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do informado em versão anterior deste texto, o Estado Novo durou de 1937 a 1945.

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