Única mãe da seleção, Tamires parou de jogar duas vezes antes da Copa

Lateral-esquerda enfrentou dificuldades para conciliar jornada como mãe e atleta

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Santos

"Vai sair? Põe uma blusa, tá? Está frio lá fora." 

A preocupação de Tamires Cássia Dias de Britto, 31, pode até soar estranha, mas é algo instintivo na vida da lateral esquerda titular da seleção brasileira na Copa do Mundo feminina da França.

Tamires em ação na vitória sobre a Itália, pela Copa do Mundo da França
Tamires em ação na vitória sobre a Itália, pela Copa do Mundo da França - CBF/Divulgação

A jogadora se tornou um exemplo raro. É a única mãe entre as 23 jogadoras convocadas pelo técnico Vadão.

"As meninas brincam comigo dizendo que deixaram a mãe em casa, mas, quando tenho a oportunidade, sempre aconselho cada uma. Elas me perguntam muito das diferenças no corpo, de como foi voltar ao futebol", disse à Folha.

"Eu ainda quero outro filho. Meu planejamento é jogar mais cinco anos, mas também pode acontecer antes."

A mineira de Caeté, cidade de 40 mil habitantes da região metropolitana de Belo Horizonte, cresceu jogando futebol com o irmão e primos.

Aos 11 anos, ficou encantada quando viu os dribles e jogadas plásticas protagonizadas por Sissi pela televisão durante a campanha que levou a seleção ao terceiro lugar na Copa do Mundo feminina dos Estados Unidos, em 1999.

"Surgiu ali um sonho para mim. Ainda não sabia como faria isso, mas guardei essa vontade no coração", conta.

A chance de transformar o sonho em realidade veio alguns anos depois, quando a tia se mudou para São Paulo. Aos 15 anos, Tamires decidiu morar longe da mãe para tentar a sorte no futebol.

Após passar por times de futsal de Guarulhos, foi aprovada em um teste no Juventus. Foram dois anos no clube e o início do relacionamento com César, então um meia em ascensão nas categorias de base do time da Mooca.

"Ele pediu autorização à Magali [técnica do Juventus] para namorar comigo", lembra.

O casal se distanciou pelas andanças do futebol. Tamires foi para o Santos e depois Charlotte Eagles, nos EUA. Ele tentava a vida em clubes menores do Brasil e do exterior. Chegou a jogar na Macedônia.

Tamires estava decidida a conciliar o esporte com os estudos em uma universidade nos Estados Unidos quando recebeu em Caeté a visita de César. Ele queria reatar. Aos 21 anos, durante um exame de rotina, veio a notícia de uma gravidez não planejada.

"Foi um baque, chorei muito. Estava em ascensão na carreira. Ouvi que o futebol ficaria impossível para mim, que não voltaria mais", conta.

O choque fez a jogadora tomar uma decisão dura: desistir do futebol. "Passei a enxergar as coisas boas da gravidez do Bernardo. O sonho ficou adormecido. Assistia aos jogos grávida e confesso que sentia até dor no coração. O apoio familiar foi fundamental."

No fim de 2010, com o filho ainda bebê, um convite do Atlético-MG para voltar a jogar serviu como uma injeção de ânimo. A mãe dela cuidava de Bernardo, enquanto César jogava pela Patrocinense, a 400 km da capital mineira, mas a tentativa não deu certo.

"Foi opção minha parar novamente, queria estar próxima deles. Essa volta foi crucial para que eu pudesse estar hoje na seleção. Fui muito bem contra o São José, que tinha o técnico da seleção brasileira na época [Márcio Oliveira]. Depois, ele me convocou para a seleção, em 2013", conta.

Tamires persegue a italiana Guagni na vitória sobre as europeias por 1 a 0, em Valenciennes
Tamires persegue a italiana Guagni na vitória sobre as europeias por 1 a 0, em Valenciennes - Denis Charlet/AFP

A volta do marido a São Paulo despertou nela o desejo de tentar novamente, em 2013. Defendeu então o São Bernardo e, posteriormente, o time do Centro Olímpico.

Foram quase quatro anos afastada do futebol, somadas as duas paradas. Mesmo assim, chegou à seleção e viu a carreira deslanchar. Depois do Pan-Americano de 2015, em Toronto, recebeu um convite para jogar no Fortuna Hjørring, da Dinamarca.

Foi o momento em que o marido, então com 30 anos e já desiludido do futebol, resolveu abdicar da própria carreira. Passou a cuidar do filho durante os jogos e treinamentos dela.

"Ele me falou que um dia abri mão da minha carreira por ele e que agora faria o mesmo por mim", disse.

César ainda trabalhou ajudando a construir campos e em ações para o Fortuna, divulgando o clube. Passou, também, a atuar na comissão técnica em alguns treinamentos. Hoje, tenta a carreira como agente de futebol.

No Mundial da França, são raros os casos como os de Tamires. Hwang Bo-ram, zagueira da já eliminada Coreia do Sul, ficou mais de um ano e meio parada por causa da gravidez. Voltou a treinar cinco meses após dar à luz a menina Bom (hoje com um ano e dois meses). Voltou a exercitar-se em sessões de pilates. Depois, passou a participar dos treinos de um time escolar.

Recuperou a forma a tempo de ir para sua segunda Copa –em 2015, no Canadá, foi pedida em casamento diante das câmeras pelo pai da bebê.

Ainda mais notável é a história da meia jamaicana Cheyna Matthews, que disputa seu primeiro Mundial apenas nove meses depois de ter Josiah.

Ioga e exercícios de força a colocaram nos trilhos para superar dores abdominais e fortalecer os músculos da virilha no período pós-parto.

Na seleção americana, favorita ao título, a atacante Jessica McDonald é a única mãe. Seu filho, Jeremiah, 7, irá à França para torcer por ela no jogo contra a Espanha, na próxima segunda (24), pelas oitavas de final da Copa do Mundo.

Depois de sua primeira convocação para a equipe nacional, no fim de 2016, a vida de Jessica entrou nos trilhos.

Mas antes, teve que acumular trabalhos (em 2015, fez dupla jornada em seu clube e empacotando produtos em um depósito da Amazon) por causa dos ainda baixos salários praticados na liga do país.

Segundo a entidade que organiza o campeonato americano, oito atletas em atividade por lá têm filhos.

Na Espanha, há cláusulas contratuais que, em caso de gravidez de atletas, permitem aos clubes rescindir acordos sem pagar multa. No Brasil, a prática não é adotada, mas os temores são semelhantes.

"Muitas têm o desejo de ser mãe, só que bate uma insegurança pela instabilidade da nossa profissão. Elas não se sentem seguras para ter uma gestação e voltar. Isso as prende muito", diz Tamires.

Um caso emblemático é o de Joicinha. A atacante já havia passado pela seleção quando descobriu uma gravidez avançada, no quinto mês, em outubro de 2011. Menos de um ano depois, voltou aos gramados.

Orgulho do filho, hoje com 9 anos, Tamires vive a melhor fase da carreira. Ela diz que não permanecerá em seu clube atual, quer novos rumos. Mas antes, sonha com a conquista do torneio que viu pela TV e que lhe deu esperança para realizar seu sonho.

Colaborou Lucas Neves, de Paris

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