Com arroz, feijão e amigos, Vinícius Jr tenta vingar no Real Madrid

Venda mais cara do futebol brasileiro, atacante inicia sua segunda temporada na Espanha

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Tariq Panja
Madri | The New York Times

Com dois brincos de diamantes reluzindo nas orelhas, Vinícius José Paixão de Oliveira Júnior passou pela porta da frente da elegante casa em que vive, depois de um dia de treino pelo Real Madrid.

Poucos minutos mais tarde, Vinícius Júnior e seus dois melhores amigos, brasileiros como ele, já estavam com o videogame "Fifa" ligado na sala de estar, e prontos para iniciar um ritual diário: uma maratona de videogames que só parece parar na hora das refeições.

"Olha essa cabeçada", gritou um dos amigos quando a versão digitalizada de Vinícius Júnior saltou no ar e disparou a bola para a rede, fora do alcance do goleiro. Vinícius, 19, ergueu a cabeça da mesa de massagem para ver o lance na TV de 65 polegadas, e depois devolveu a atenção ao seu celular, enquanto o fisioterapeuta pessoal que o atende continuava a trabalhar em suas pernas.

O atacante Vinicius Junior em sua casa na cidade de Madri
O atacante Vinicius Junior em sua casa na cidade de Madri - Gianfranco Tripodo/The New York Times

A casa, em um dos bairros mais exclusivos de Madri, parece o paraíso de um adolescente. Além do televisor enorme, há "scooters" elétricas, uma cadeira de motorista para um videogame de corridas, mesas de pingue-pongue e mesas de sinuca. Os confortos estão lá tanto para distrair quanto para entreter: o status de Vinícius como próximo grande astro do Real Madrid significa que ele raramente sai em público.

Seus amigos também vivem sob regras rígidas, e não podem sair quando Vinícius está em casa.

"Não é justo que a gente saia quando ele tem de ficar em casa", disse um deles, Luiz Felipe Menegate. "Sabemos que estamos aqui para ajudá-lo a ter sucesso."

"Como sempre", diz Vinícius, com um sorriso.

Até certo ponto, ele está certo. Mesmo que não fosse um dos talentos jovens mais brilhantes do esporte, Vinícius provavelmente passaria seus dias falando de futebol com Menegate e outro amigo desde a infância, Wesley Menezes, ou devorando pratos de feijão preto, arroz e filé preparados por uma de suas tias favoritas. Mas de muitas outras maneiras —não só a casa repleta de brinquedos mas o salário multimilionário e a atenção e expectativas que acompanha sua posição como um dos adolescentes mais valiosos do planeta—, Vinícius Júnior agora vive em um mundo completamente novo.

Em abril, ele e sua equipe convidaram o The New York Times a visitar seu mundo, oferecendo um raro vislumbre sobre o cuidado, planejamento e, sim, confortos que ajudam um jovem jogador de talento a navegar a velocíssima transformação de potencial craque a profissional.

No caso de Vinícius, a mudança de endereço em si já é suficientemente notável.

Poucos anos atrás, Vinícius, um atacante que joga aberto, com muito talento e velocidade, dividia um cômodo apertado com mais de meia dúzia de parentes em uma cidade do Rio de Janeiro notória pelo crime violento e pobreza sufocante. Então, em maio de 2017, o Real Madrid fechou acordo com o Flamengo, um clube do Rio de Janeiro, pelos direitos sobre o atacante adolescente, por 45 milhões de euros (pouco mais de US$ 50 milhões, equivalente a R$ 164 milhões em valores da época). Em um instante, e antes que ele chutasse sua primeira bola como profissional, Vinícius Júnior se tornou o jogador de exportação adolescente mais caro na história do futebol brasileiro.

A transação por valor recorde fez de Vinícius, aos 16 anos, um milionário instantâneo. Mas também deu início imediato ao esforço para criar a jornada mais suave possível do Rio para a Europa. É para isso que Menegate e Menezes o acompanharam, além da tia de Vinícius e quase uma dúzia de outros parentes, todos vivendo na casa de dois andares abrigada por trás dos altos portões, das samambaias e das folhagens de La Moraleja, um baluarte dos ricos e poderosos de Madri.

É o sonho de todo jovem brasileiro que joga futebol ser contratado por um clube como o Real Madrid, uma equipe de superastros que venceu mais títulos internacionais que qualquer outro clube. A jornada de Vinícius, porém, representa algo diferente do percurso usual da favela à fama. Também retrata o jogo febril e de alto risco que o Real Madrid empreende para manter sua excelência, a facilidade com que os grandes clubes podem empurrar para cima o valor (e as expectativas) quanto a um jogador não comprovado, e os esforços de uma família para manter pelo menos uma pontinha de normalidade em meio a essa tempestade.

"Na verdade não sinto pressão", disse Vinícius Júnior em abril. "Meu foco está em mim e em curtir meus momentos no gramado."

Boa parte disso acontece, ele diz, por conta do que existe no interior da casa em La Moraleja, protegido dos olhos curiosos de torcedores e jornalistas, e a um universo de distância de sua infância.

Mesmo pelos padrões de São Gonçalo, uma cidade costeira de cerca de 330 mil moradores marcada pela pobreza e crime, perto do Rio, a família Paixão de Oliveira tinha uma vida difícil. O pai de Vinícius teve de aceitar emprego em um estado vizinho para sustentar a família, instalando cabos para empresas de TV a cabo e de internet. Mas muitas vezes ele não ganhava o bastante.

Aos seis anos, Vinícius, que segundo parentes mostrou sinais de talento com a bola assim que aprendeu a andar, foi inscrito para treinar futebol em uma escolinha local dirigida por Carlos Eduardo Abrantes, que todo mundo conhece como Cacau. É uma das dezenas de escolas afiliadas ao Flamengo, e isso significa que Cacau também compartilhou das recompensas, na transferência de Vinícius Júnior ao Real Madrid.

"Foi uma boa quantia", ele disse, sem especificar o valor exato.

Cacau disse que a família de Vinícius Júnior muitas vezes não tinha como pagar as mensalidades da escola, e que era comum que não tivesse o bastante para comer. Cacau conta que ele e a mulher, Valéria, às vezes ajudavam, dispensando um pagamento ou servindo uma refeição a Vinícius. "Ele era muito carente", recordou Cacau, em uma tarde escaldante de fevereiro. Lá perto, um grupo de meninos treinava no campo de grama artificial, o único de sua escola. Um outdoor duplo mostrando imagens de Vinícius Júnior parecia assistir ao treino.

Quando Vinícius Júnior chegou aos 10 anos, o Flamengo já o tinha assinado para sua escola, do lado de lá da cidade. Aos 12 anos, ele se mudou para a casa de seu tio Ulysses, cuja casa ficava mais perto do centro de treinamento do Flamengo, para evitar a necessidade de uma viagem que às vezes demorava três horas.

Aos 14 anos, o talento raro de Vinícius Júnior já estava claro. Ele era um dos melhores jogadores do Rio, e logo se tornou astro nas categorias de base da seleção brasileira. Foi então que a TFM, uma das agências de talentos futebolísticos brasileiras, começou a administrar sua carreira, tomando o lugar de um agente anterior e oferecendo assistência que permitiu que o pai do jogador voltasse a viver com a família, e concentrasse suas atenções no avanço do jovem atacante.

A TFM apostou na promessa e começou a investir em Vinícius Júnior, convencendo a família a permitir que representasse o talentoso jovem. O arranjo informal acarretava riscos para a empresa, porque a lei brasileira não permite que jogadores assinem com agentes antes dos 18 anos.

"Era um acordo de cavalheiros, e esse tipo de acordo muitas vezes não é respeitado pelos pais", disse Frederico Pena, o agente que comanda a TFM.

A agência ajudou a família de Vinícius Júnior a alugar um apartamento mais perto do Flamengo e pagou para que ele treinasse em duas escolas para atletas de alto desempenho nos Estados Unidos, usadas por clubes esportivos profissionais. A ascensão de Vinícius Júnior foi tão rápida que um terceiro período de treinamento terminou abandonado: ele já havia sido promovido ao time principal do Flamengo.

Vinicius Junior, na maca, recebe massagem enquanto seus amigos jogam videogame em sua casa de Madri
Vinicius Junior, na maca, recebe massagem enquanto seus amigos jogam videogame em sua casa de Madri - Gianfranco Tripodo/The New York Times

Quando Vinícius Júnior foi escolhido como melhor jogador do torneio e se tornou artilheiro da seleção brasileira vencedora do campeonato sul-americano sub-17, no começo de 2017, seu desempenho resultou em uma das batalhas de contratação mais notáveis na história recente do futebol: Real Madrid e Barcelona, rivais amargos em campo e fora dele na Espanha, decidiram que queriam Vinícius Júnior —um adolescente que nem tinha estreado pelo time principal do Flamengo— a praticamente qualquer custo.

O Barcelona abriu o leilão oferecendo 10 milhões de euros e uma cláusula de opção que garantia que cobriria qualquer oferta de outro clube. O Real Madrid fez lance melhor. O duelo prosseguiu até que o valor da transação chegasse aos 45 milhões de euros (R$ 164 milhões em valores da época).

 

Àquela altura, disse Pena, o presidente-executivo do Real Madrid, José Ángel Sánchez, disse a representantes de Vinícius Júnior que o clube desistiria da disputa pela contratação de Kylian Mbappé, a sensação adolescente do futebol francês, então astro do Mônaco, se Vinícius Júnior assinasse com o clube.

"Percebemos que eles o queriam realmente, porque o estavam comparando, sem que ele tivesse jogado uma só partida, com alguém que estava fazendo sucesso em alto nível na Europa", disse Pena, recordando que chegou a rir, naquele momento, porque não tinha certeza de que Sánchez estivesse falando sério.

A transação foi discretamente concluída no começo de 2017. Vinícius Júnior, aos 16 anos, seria mais rico do que poderia ter imaginado em qualquer momento de sua vida. Alguns meses mas tarde, ele faria sua estreia pelo time principal do Flamengo, no famoso estádio Maracanã, no Rio, e depois anunciaria sua transferência já acertada para a Espanha. Pouco mais de um ano depois, Vinícius Júnior, aos 18 anos, chegou pela primeira vez a Madri, acompanhado por sua comitiva.

Esperando para entrar no auditório onde a mídia noticiosa espanhola estava reunida para seu primeiro vislumbre da mais recente contratação de alto preço do Real Madrid, Menegate zombou de Vinícius Júnior pelas roupas formais que eles haviam sido instruídos a usar. Vinícius, vestindo um terno escuro feito sob medida, riu e disse que seu amigo estava zangado porque não estava tão bonito quanto ele. As brincadeiras continuaram, até que Menegate lançou um, olhar ao amigo.

"Você está acreditando nisso tudo?", ele perguntou.

"Não", respondeu Vinícius. "Só vou acreditar quando entrar em campo."

Além dos amigos, Vinicius levou o arroz e o feijão à Espanha para facilitar sua adaptação
Além dos amigos, Vinicius levou o arroz e o feijão à Espanha para facilitar sua adaptação - Gianfranco Tripodo/The New York Times

Vinícius Júnior voltou ao Brasil para encerrar sua temporada no Flamengo, e ele seus familiares, para quem os dias de penúria tinham chegado ao fim, tentaram minimizar sua nova posição. A família se mudou para uma casa melhor e comprou um carro novo —que os agentes de Vinícius insistiram que fosse blindado— mas em geral manteve a discrição.

"Eles costumavam dizer que era melhor fingir que não tinham aquele dinheiro todo, para não fazer nada estúpido", disse Pena.

A transição para a Europa nem sempre foi fácil. A batalha por uma posição como titular no Real Madrid não é para os fracos, e mesmo as mais brilhantes contratações e os maiores talentos caem rapidamente em desfavor junto à torcida e à imprensa. Mas no mínimo essa batalha, que prossegue na sexta-feira em um amistoso entre Real Madrid e Atlético de Madrid no Met Life Stadium, em Nova Jersey, está sob o controle de Vinícius Júnior: os amigos e parentes que mudaram boa parte de suas vidas para apoiá-lo já abriram mão de parte de suas identidades para ajudá-lo a florescer. Menegate reconheceu o fato certa tarde, enquanto esperava pela volta do amigo depois de um treino.

"Sei que já não somos só Menegate e Wesley, porque as pessoas agora nos veem como os amigos que vivem com Vinícius", ele disse.

Mas as tentativas de criar uma vida normal continuam. Vanessa, a tia de Vinícius e uma das pessoas que o acompanharam, cozinha todas as refeições consumidas na casa, e o cardápio raramente varia: arroz, feijão e proteína, os alimentos básicos das refeições caseiras brasileiras. Quase todo dia, a família se reúne em volta da mesa algumas horas antes do jantar, para comer fatias de bolo de fubá acompanhadas por café doce brasileiro, e ouvir pagode em alto volume nos alto-falantes da sala. Se desconsiderarmos o fato de que eles agora vivem em uma casa que pertenceu ao presidente de um dos maiores conglomerados de varejo da Espanha, eles poderiam estar de volta ao lotado apartamento de São Gonçalo, família e amigos desfrutando da companhia uns dos outros, discutindo futebol e o sabor da comida da tia Vanessa.

No dia seguinte Vinícius Júnior voltará aos treinos. O clube se concentrará em seu desenvolvimento. O agente se concentrará em sua fortuna. Os parentes e velhos amigos lhe farão companhia. A tia fará mais arroz e mais feijão.

"Meu pai me diz que tenho de me concentrar no gramado", disse Vinícius Júnior. "Porque fora de campo não tenho problema algum."


 
The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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