Primeiro parceiro de Neymar foi 'gato' e tenta virar técnico

Karioca desistiu do futebol aos 28 anos e trabalha na Portuguesa Santista

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Santos

O destino parecia mais do que generoso com o Santos no início dos anos 2000. Pouco após o sucesso inesperado com a geração liderada por Diego e Robinho, que tirou o clube alvinegro de uma fila de 18 anos sem títulos, o time havia encontrado uma joia com credenciais ainda mais promissoras de nome Neymar.

Nas categorias de base, a nova aposta fazia dupla de ataque e dividia sucesso com Karioca, apelido de Eudeir Chagas Durval, menino de raro talento para gols, que ostentava números que deixavam boquiabertos todos no clube. 

O roteiro parecia perfeito, mas tudo ruiu em 29 de novembro de 2006. Karioca acordou e viu o próprio rosto estampado na capa do jornal Lance!. Logo acima da foto, um título com letras garrafais com a palavra gato, jargão para os jogadores com idade adulterada no futebol.

Eudeir, na verdade, era Davi Lessa da Silva e nasceu cinco anos antes do que apontava o seu documento falso. De infância humilde, alegou que nem sequer possuía registro, já que passou a maior parte da vida "trabalhando na roça", em Cambuci e Itaperuna, no interior do Rio de Janeiro.

Resolveu confessar à Justiça toda a verdade. O sonho ficou pelo caminho.

"Fiz aliança com pessoas erradas. É uma ferida que, graças a Deus, já cicatrizou. A cicatriz não esconde a ferida e carreguei essa marca por muito tempo. Hoje entendo que precisei ser ferido para ser curado", afirmou à Folha.

Após deixar o Santos, rodou por clubes menores, de São Paulo (Marília e Portuguesa Santista), do Rio de Janeiro (Volta Redonda) e de Goiás (Canedense, onde se orgulha por ter formado dupla de ataque com Túlio Maravilha, e Santa Helena).

"Eu era uma criança, mas olharam para mim como um produto. Tive que suportar um bombardeio. Fui muito machucado, estava no olho do furacão. Por isso, muita gente até se mata. Se não fosse Jesus na minha vida não sei o que seria de mim", diz.

"Mas escuta uma coisa: o Karioca sempre volta, parece até o Highlander. O que era para me matar sempre acaba me trazendo de volta", completa.

O antigo gato agora está de volta ao futebol e trabalha para se tornar técnico. Começou no último mês a estagiar na mesma categoria em que praticamente viu tudo acabar, no sub-15, desta vez da Portuguesa Santista.

Evangélico, estava orando no último mês quando recebeu uma ligação inesperada. Era um pastor do interior de São Paulo, conhecido pelas andanças como missionário, função que exerce anunciando a sua fé e contando a sua história de vida.

Ele queria saber se Karioca ainda estava no futebol. "Eu não jogo mais, pastor. Fiz um propósito com Deus e parei com 28 anos", disse.

Durante a conversa, contou sobre um sonho que até então alimentava silenciosamente, o de um dia voltar ao esporte, mas agora como treinador.

Na manhã seguinte, foi surpreendido ao ver um valor na sua conta para pagar o primeiro curso do Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo na Federação Paulista de Futebol (FPF), que ocorreu em maio. Seu confidente, o pastor, fez o depósito.

"Foi um milagre. Quem ia esperar algo assim?", afirmou.

Davi Lessa trabalha hoje, ainda sem remuneração, nas categorias de base da Portuguesa Santista
Davi Lessa trabalha hoje, ainda sem remuneração, nas categorias de base da Portuguesa Santista - Jardiel Carvalho/Folhapress

O técnico Adriano Piemonte, que trabalhou no último ano como supervisor e auxiliar técnico nas categorias de base do Santos, foi quem abriu as portas para Karioca na Portuguesa Santista.

Ele acompanha diariamente os treinamentos da equipe sub-15 e faz análises dos adversários da equipe, que disputa o Campeonato Paulista.

"Nós nos conhecemos nos campos de futebol. Sabendo que estava buscando uma oportunidade resolvemos ajudá-lo. Como ele jogou bola, tem colaborado bastante. Ele conhece desse universo. A história dele também serve de exemplo para os meninos", afirmou Piemonte.

"Vontade e determinação ele já mostrou que tem. Esperamos ser uma porta para que possa começar uma grande carreira", completou Marcos Martiniano, gerente administrativo de futebol do clube.

Karioca ainda não recebe salário da Portuguesa Santista. O sustento mensal vem "pela fé", como ele define. Dos chamados para viajar e dar palestras para grupos de casais e jovens, geralmente realizados aos fins de semana.

"Observo tudo, por enquanto. O preparador físico, os treinamentos, a grade que é desenvolvida para uma semana de trabalho, as conversas após os jogos. Os anos chegaram, os cabelos brancos e o futebol mudou muito", diz Karioca.

Curiosamente, a maior inspiração para ter sucesso neste reinício é a trajetória de um técnico com quem nunca trabalhou: Claudinei Oliveira, campeão da Copa São Paulo pelo Santos, em 2013, e que, atualmente, está em sua segunda passagem pelo Goiás.

"Quando o conheci estava em uma mesinha no terceiro andar do Santos, trabalhava no administrativo. Via treinadores famosos, que fizeram muito nome nas categorias de base, mas que não explodiram no futebol. Ele, silencioso, chegou e ainda está lá", afirma Karioca.

O principal conselheiro, por sua vez, é o técnico que viu tudo desabar, o ex-meia Lima, campeão com o Santos de Pelé na década de 1960 e atual coordenador do departamento de avaliações do clube.

"Temos uma relação maravilhosa. Depois de um tempo sem contato, para surpresa minha, soube que estava em uma nova fase na sua vida. Todas as nossas conversas são como de pai para filho. Ele assumiu tudo, nunca negou sua falha. Agora, tenho o aconselhado. Creio que tem tudo para triunfar, pois sempre foi muito sério na hora de trabalhar", disse Lima.

O trabalho é o primeiro passo para um recomeço no mundo que mudou a sua vida. Ele se diz realizado, mesmo considerando que poderia ter ido mais longe no futebol se não tivesse passado pelos contratempos que viveu.

"Depois do que aconteceu, muita gente ainda me achava bom de bola. Meu caso envolveu muita ganância. Eu paguei o pato, sei disso", contou.

Em 2012, em entrevista à Rádio Estadão ESPN, Neymar falou sobre o antigo parceiro das categorias de base do Santos e uma inesquecível partida contra a Portuguesa em que Karioca marcou dois gols de falta, um de perna direita e outro de perna esquerda.

"Ele fazia a diferença para a gente. Acho que se tivesse um pouco mais de chances viraria", disse o atacante à época.

Karioca jamais conseguiu se desvincular do apelido que trouxe tudo à tona. "Não ligo, poucos mesmo me conhecem como Davi", diz.

Disposto a vencer na nova tentativa no mundo da bola, ele avisa: "Se vier o antigo Karioca para atrapalhar, vou afogá-lo de volta".

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