Copiar modelos antigos de camisas vira moda em clubes da Europa

Marcas apostam em reedições de modelos usados em temporadas históricas

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Rory Smith
Manchester | The New York Times

As mangas tinham de mudar.

Nos cinco últimos anos, os uniformes do Arsenal eram produzidos pela marca alemã de material esportivo Puma, e sempre empregaram as chamadas mangas raglã, com cava diagonal e a cor se estendendo até a gola.

Em outubro do ano passado, porém, a Adidas substituiu a concorrente como fornecedora de material esportivo ao Arsenal. E aos olhos dos estilistas da Adidas, o Arsenal sempre foi um clube cujas camisas tinham mangas de cava reta. Como diz Inigo Turner, o diretor de design da empresa, a manga de cava reta é "parte do DNA do Arsenal".

O problema da Adidas era a falta de prazo. Seu processo usual de pesquisa entrevistas e visitas –que leva dois anos antes que um esboço preliminar seja decidido, quanto mais o design final– teria de ser abreviado para alguns meses, para que as novas camisas pudessem ser lançadas na metade deste ano.

Por sorte, os estilistas de Turner tinham uma ideia clara em mente, de qualquer jeito: retomar as coisas do ponto em que seus predecessores as deixaram 25 anos atrás, a última ocasião em que a Adidas respondeu pelos uniformes do Arsenal. As mangas de cava reta e de cor diferente da camisa voltariam, assim como a gola em V. A Adidas voltaria a exibir as três listras de sua marca nos ombros da camisa, também.

O material e o corte mudariam, é claro, mas de outra forma tanto a primeira quanto a segunda camisa do time –a segunda usando um esquema de cor tipo "banana machucada"– lembrariam muito os uniformes do Arsenal no final da década de 1980, começo da década de 1990.

Não foi a primeira vez que a Adidas se inspirou em seus próprios arquivos para buscar ideias: muitas das camisas que ela criou para a Copa do Mundo da Rússia no ano passado portavam ecos de torneios do passado. Turner disse que essa era uma escolha deliberada, então e agora. "Tomamos pontos de referência autênticos, que as pessoas reconhecem, e os atualizamos", disse Turner, definindo o conceito como "nostalgia autêntica".

A Adidas não é a única marca que descobriu que isso é lucrativo. Uma olhada nos uniformes da Premier League para sua nova temporada revela uma camisa do Chelsea, produzida pela Nike, com referência ao uniforme do clube entre 1991 e 1993, e uma camisa da New Balance para o Liverpool adornada por riscas brancas finas, como a que o clube usava em 1984. (O Newcastle recuou ainda mais ao passado: a camisa projetada pela Puma para o time homenageia a equipe que venceu a Fairs Cup em 1969.)

Turner não se surpreende por esse período estar se provando tão popular. Ainda que admita que isso possa ser um exemplo do que a jornalista Hadley Freeman define como "regra dos 30 anos" –o tempo necessário para que as crianças cresçam, conquistem empregos influentes nos setores de criação e se dediquem a restaurar aquilo de que gostavam na infância a uma posição de destaque–, ele também argumenta que boa parte do processo é estimulada pela moderna cultura jovem.

"É um período em que, na moda em termos mais gerais, as pessoas começam a contemplar o passado e vê-lo como interessante", disse Turner. "Os padrões loucos, as tendências gráficas. Há um elemento de nostalgia, mas se você considerar a cultura do skate e do 'streetwear', eles cada vez mais fazem referência a camisetas do passado, especialmente dessa era".

E no entanto o desejo de evocar esse período específico da história do futebol não se limita à moda e design. Cada vez mais, o final da década de 1980 e começo da década de 1990 estão se tornando fonte de interesse, referência e inspiração para os cineastas.

Dois documentários passados em 1989 foram lançados com algumas semanas de intervalo em 2017– "89", falando sobre a notável vitória do Arsenal no campeonato inglês daquele ano, e "Kenny", uma cinebiografia de Kenny Dalglish, que foi jogador e treinador do Liverpool, concentrado especialmente em seus esforços para consolar o clube e a cidade depois do desastre de Hillborough [causado por superlotação que deixou 96 mortos em um estádio de Sheffield, em uma partida entre Liverpool e Nottingham Forest].

Este ano, Asif Kapadia, um documentarista premiado com o Oscar cujos trabalhos anteriores incluem os documentários "Senna" e "Amy", lançou "Maradona". O foco não é toda a carreira de Diego Maradona, das origens em Buenos Aires à sua passagem pelo México como treinador este ano, mas sim o período luminoso, explosivo e por fim destrutivo em que ele defendeu o Napoli, entre 1984 e 1991.

Boa parte das imagens usadas por Kapadia são de arquivo, gravadas por dois câmeras que Jorge Cyterszpiler, o agente de Maradona, contratou para seguir seu cliente durante seus dias no futebol, documentando sua vida. Os câmeras tinham acesso muito livre –às vezes eram até autorizados a filmar da lateral do campo–, mas o filme em que supostamente trabalhavam nunca foi lançado. Em lugar disso, os vídeos fiaram esquecidos, em um formato obsoleto, divididos entre depósitos em Nápoles e Buenos Aires. Kapadia teve de rastreá-los e restaurá-los laboriosamente.

"São imagens de antes da era da 'steady cam'", disse Kapadia em entrevista ao site Soccer Bible, antes do lançamento do filme. "Eles não tinham câmeras superdigitais. A imagem não é perfeita. Adoro o fato de que é trêmula. É a imperfeição das pessoas, dos seres humanos, de Diego Maradona, dos gramados, do equipamento, do clima, de tudo mais".

"É o que estamos tentando mostrar: o futebol costumava ser assim. Veja o estado dos gramados, os carrinhos, os personagens em campo. As coisas mudaram. O esporte é mais limpo, todo mundo tem um agente de relações públicas, e Maradona jamais foi assim. Ele vem de uma era diferente, e é disso que eu gosto'".

Figurinha de Maradona com a camisa do Napoli, em foto da década de 1980
Figurinha de Maradona com a camisa do Napoli, em foto da década de 1980 - Andreas Solaro/AFP

Considerando a proporção do espaço cultural do futebol –nos uniformes que os clubes usam, nos filmes que contam a história do esporte– que essa era ocupa hoje, é certo apostar que outras pessoas compartilham da opinião de Kapadia.

O final da década de 1980, o começo da década de 1990 –o período limítrofe entre a era pré-moderna do futebol e sua reformulação em 1992 com a criação da Premier League e da Champions League– parece falar aos torcedores mais alto do que nunca, quer eles se recordem desses anos, quer não. É mais que simples nostalgia, e não estamos diante de uma simples tentativa cínica de faturar ainda mais dinheiro com os torcedores ao conduzi-los pelos caminhos do passado.

O apelo é mais profundo: uma era familiar o bastante para não parecer um passado distante –como aconteceria, por exemplo, com um período do qual só existam imagens em branco e preto–, mas, como disse Kapadia, ainda assim exótica, de certa forma, seu lado bruto expondo grande contraste com o esporte higienizado, corporativo e globalizado que temos hoje, produzido com esmero e embalado com esforço incansável para consumo.

É um lembrete da cara que o futebol tinha antes dos contratos de direitos de imagem e dos superagentes, antes que clubes se vendessem a oligarcas, fundos de hedge e países. O perigo era maior, é claro, para os jogadores e talvez até para os torcedores –uma experiência mais bruta e menos refinada, na qual violência e racismo eram comuns. Muito do que foi perdido não seria bem-vindo caso retornasse.

Ainda assim, porém, a demanda por filmes e a admiração pelos uniformes sugerem que existe algum anseio pelo passado, no mínimo. "A era se conecta com ideia da vida anterior à Premier League, a um senso de conexão entre o clube, a área, os jogadores e a tribo mais ampla dos torcedores", disse a jornalista e escritora Amy Lawrence, uma das produtoras de "89".

"O time do Arsenal que venceu a liga naquele ano não só refletia sua comunidade em termos de diversidade mas era um grupo de jogadores com o qual a torcida podia beber, conversar, conhecer", acrescentou Lawrence. "Havia uma cultura compartilhada que agora se tornou impossível".

Para lançar suas novas camisas, a Adidas encomendou um vídeo no qual o atual time poliglota do Arsenal– Mesut Özil e Alexandre Lacazette e os demais– falavam com sotaque e usando gírias do norte de Londres. A resposta dos torcedores foi uniformemente positiva. "O filme capturou alguma coisa", disse Lawrence.

Três décadas atrás, quando o Arsenal usava mangas de cava reta, o vídeo não teria feito muito sentido. A maioria dos jogadores do time vinha de Londres e falava mesmo daquele jeito.

​Ver esse elo reimaginado para 2019 pareceu ter causado imenso impacto, no entanto. "A torcida do Arsenal vinha desconectada do clube há muito tempo, por motivos complexos", disse Lawrence. "Foi como ligar a energia diretamente na fonte. Despertou memórias de algo real, algo autêntico. Atualizado e repaginado, é claro, mas ainda assim recebido com gratidão por um público que lastimava ter perdido essa conexão".

Tradução de Paulo Migliacci

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