Psicóloga é 1ª mulher na América Latina faixa preta no krav magá

Luta de defesa pessoal não tem distinção de categoria por gênero

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São Paulo

Larissa Pace Leite sempre quis lutar.

Durante a infância, no bairro de Botafogo (zona Sul do Rio de Janeiro), praticou handebol, basquete e principalmente vôlei, sempre incentivada pela mãe, Vanna. Ela, no entanto, não queria que a filha praticasse algo "agressivo".

“Eu via um saco de pancada e ficava animada, queria bater. Minha mãe não deixava, falava que não era coisa de menina”, lembra Larissa.

Aos 15 anos, teve a primeira chance. Procurou uma turma de judô iniciante para mulheres e não achou. Encontrou uma de caratê, mas o que chamou sua atenção, para desespero de sua mãe, foi o tatame ao lado: “Porradaria comendo, galera correndo, professor gritando. Fiquei apaixonada!” Teve que convencer seu pai, Wilson, para poder começar a lutar.

Hoje com 31 anos e graduada e mestre em psicologia pela Universidade Federal Fluminense, Larissa se tornou a primeira mulher na América Latina a conquistar a faixa preta no krav magá. Quem confirma o feito é Mestre Kobi, precursor da luta no Brasil e na região, e criador e chefe da Federação Sul-Americana.

“Até agora, isso [a faixa preta] foi algo inalcançável para as mulheres”, diz. Em 30 anos, segundo a federação, 156 alunos fizeram exame para a faixa e, dos 69 que passaram, Larissa é a única mulher.

A luta de defesa pessoal criada em Israel não se intitula como arte marcial, tampouco difere categorias por gênero e chegou ao Brasil com Kobi, em janeiro de 1990. Trabalha o preparo físico, o poder de reação, aumento da agilidade e do campo de visão e é usada por batalhões militares.

Para Larissa, transformou seu modo de lidar com um mundo que ela mesmo entende que “vive em tempos difíceis, de muita violência”.

Larissa Pace, primeira mulher a conseguir a faixa preta no krav magá latino-americano, pela Federação Sul-Americana de Krav Magá
Larissa Pace, primeira mulher a conseguir a faixa preta no krav magá latino-americano, pela Federação Sul-Americana de Krav Magá - Ricardo Borges - 20.ago.2019/Folhapress

“Sou muito muito ‘mosca morta’ na vida, então me ajudou a explorar essa agressividade que não é feminina no sentido de como dizem que você tem que ser: doce e calma. Eu tenho minha agressividade, sou ativa, posso atacar. Pude descobrir isso, meu lugar, minha força, minha concentração”, explica.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídios do mundo. No país, 13 mulheres foram assassinadas por dia em 2017, conforme o os mais recentes dados do Atlas da Violência, maior número em dez anos. Os assassinatos dentro de casa cresceram 17,1% desde 2012. São 164 casos de estupro e 606 de violência doméstica registrados por dia.

Para ela, a luta dá confiança psicológica para lidar com tal realidade. Aprender que a mulher “não precisa ser” mais fraca, que pode se impor e se colocar em uma sociedade muitas vezes hostil e repressora. Foi assaltada duas vezes. Nunca aplicou a técnica.

“O cara falou ‘passa a bolsa', eu passei. Não me desesperei ou gritei. Se tivesse gritado, poderia ter sido pior. Esse é o psicológico. Eu tinha confiança que se ele fosse fazer alguma coisa mais violenta, eu
poderia me defender. Pensei ‘cara, é só a minha bolsa’. Isso vem do treino”, diz.

Larissa também não concorda que a luta, famosa por sua intensidade, possa reforçar um estereótipo de vigor masculino ou contribuir para o aumento da violência urbana. Para ela, não há qualquer estímulo à violência, pelo contrário.

“Você aprende a reagir nas proporções da agressão” entende Mestre Kobi, que diz que expulsaria da Federação um aluno que se portasse de forma “inadequada” no dia a dia.

No exame para faixa preta o aluno precisa completar uma corrida de 3 km em até 14 minutos, fazer dez barras, 15 paralelas, 60 flexões, 80 abdominais e levantar um peso de cinco quilos, cinco vezes, usando uma corda. Isso tudo três vezes em um mesmo dia, às 6h, 12h e 18h. Caso seja aprovado, no dia seguinte há um exame técnico que testa todo o conhecimento, desde a faixa branca.

Até então, nenhuma mulher havia passado sequer da primeira etapa.

Para conseguir, Larissa treinou por um ano com “rotina de atleta”: contratou um preparador físico, correu diariamente, lutou quatro vezes por semana e teve acompanhamento de uma nutricionista. Tudo enquanto atendia seus pacientes.

Hoje, faixa preta, quer apoiar e incentivar outras mulheres a praticar a luta, mas tem ressalvas contra as classes exclusivamente femininas: “A ideia do krav magá é você poder se defender de qualquer coisa, então quanto mais variedade tiver na turma, melhor”.

Larissa pensa agora em ser monitora e começar a dar aulas. Atualmente, no Brasil, há apenas cinco mestres de krav magá, todos homens.

O krav magá

O nome krav magá, em hebraico, significa "combate corpo-a-corpo".

A luta surgiu com Imi Lichtenfeld (1910-1998), judeu-húngaro filho de um instrutor de defesa pessoal. Durante a juventude, vivida em Bratislava (Eslováquia), praticou lutas e venceu torneios de boxe e luta greco-romana.

Com o crescimento do nazismo no continente, Lichtenfeld passou a integrar grupos de resistência, até que embarcou rumo ao Oriente Médio, onde integrou o Haganá —grupo paramilitar israelense e sionista, que entre as décadas de 1920 e 1950 atuou contra o Exército britânico e também para expulsar a população árabe que vivia na região onde, em 1948, seria fundado o estado de Israel.

Segundo a Federação Sul-Americana, foi durante todo este período que Litchenfeld desenvolveu o krav magá. Transformou-se em instrutor chefe da luta para o Exército israelense e, após sua aposentadoria em 1963, passou a apurar a técnica também para uso civil.

Foi em Israel que Mestre Kobi treinou com Lichtenfeld, até que, no final da década de 1980, Kobi recebeu a missão de fundar, no Brasil, a instituição que fomentaria a prática da luta por toda a América Latina.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do que foi escrito, a grafia correta do nome do criador do krav magá é Lichtenfeld, não Kitchenfeld. O texto foi corrigido.

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