A multinacional Red Bull ameaçava criar uma crise ética para a Uefa em 2017 ao classificar dois de seus times para a Champions League: o RB Leipzig (na Alemanha) e o Salzburg (Áustria).
Desde os anos 1990, a entidade que controla o futebol europeu proibia uma competição com dois clubes do mesmo dono.
Para se livrar do problema, a Uefa autorizou que as equipes participassem com a justificativa de não haver motivo para acreditar que a integridade da competição seria comprometida. O Red Bull disse que era apenas o principal patrocinador do Salzburg, não proprietário.
Isso apesar de os dois clubes terem o logotipo da empresa de bebidas energéticas no escudo, também presente nos nomes dos estádios, e do fato de os mesmos executivos aparecerem na composição de ambas as diretorias.
“Eles nos apresentaram argumentos suficientes para mostrar que poderiam estar na Champions League”, justificou o presidente da Uefa, Aleksander Ceferin.
Na temporada 2019-20, a dupla volta a disputar o mesmo torneio. O Red Bull Salzburg está no Grupo E, com Liverpool (ING), Napoli (ITA) e Genk (BEL). A versão de Leipzig caiu no G ao lado de Benfica (POR), Lyon (FRA) e Zenit (RUS).
A empresa também tem times nos Estados Unidos (New York Red Bulls) e no Brasil (Bragantino).
O dilema enfrentado pela Uefa representa um cenário cada vez mais comum no futebol mundial. Empresas donas de vários clubes ao redor do planeta tornaram-se uma espécie de multinacionais do futebol.
No Brasil, projeto de lei quer estimular que os clubes se transformem em empresas, sociedades anônimas ou LTDA .
Um dos primeiros casos do tipo aconteceu no final dos anos 1990, quando a empresa de investimento ENIC, dona do Tottenham Hotspur (ING), também tinha controle acionário do Slavia Praga (TCH) e participação no AEK Atenas (GRE).
Em 1999 a Uefa, por recomendação da Corte Europeia de Arbitragem do Esporte, implantou a norma quebrada quando os dois times da Red Bull chegaram à Champions League.
“Em qualquer caso em que a mesma empresa ou a mesma pessoa é dona de vários times, existe a possibilidade de a integridade do esporte e a incerteza do resultado ser prejudicada por alguém que queira maximizar o lucro influenciando no placar de uma partida”, analisa o alemão Markus Breuer, um dos autores de “Handbook on the Economics of Manipulation in Sport” (Manual da Manipulação Econômica do Esporte, sem lançamento no Brasil).
A questão pode ir além da manipulação do resultado de uma partida. A King Power, multinacional de lojas duty free em aeroportos, se tornou conhecida no esporte mundial por causa do Leicester City, improvável campeão inglês de 2016. A companhia é dona também do OH Leuven, equipe belga que disputa a segunda divisão.
Quando o jovem atacante David Hirst, 19, recusou oferta de renovação do Sheffield Wednesday (ING), o Leicester se interessou. Mas a indenização ao clube formador teria de ser decidida pela Federação Inglesa e custaria pelo menos 1 milhão de libras (cerca de R$ 5 milhões).
O Leuven o contratou e, como se tratava de time do exterior, o caso teve de ser resolvido pela corte de arbitragem da Fifa. A agremiação belga pagou 160 mil libras (R$ 800 mil) em 2018. Um ano depois, o atleta foi cedido de graça para o Leicester.
Há também o caso de Giampaolo Pozzo, ex-proprietário da fabricante de ferramentas Freud, que vendeu a empresa familiar para cuidar dos clubes de futebol que comprou: Udinese (ITA), Watford (ING) e Granada (ESP).
Quando adquiriu o clube inglês, recheou o elenco com 14 jogadores emprestados pelas suas equipes da Itália e da Espanha. Isso provocou a reclamação dos concorrentes e fez com que a Football League, que administra a segunda divisão do país, limitasse o número de empréstimos de atletas. Pozzo vendeu o Granada em 2016 para um investidor chinês.
Giampaolo e o filho, Gino, são suspeitos de sonegação de impostos na Itália e na Espanha e já tiveram mandado de busca em suas residências. Na década de 1990, o pai também foi investigado como parte de um esquema para fabricação de resultados.
Segundo relatório da consultoria KPMG, a estratégia de ter clubes em diferentes países serve para as empresas testarem em times menores jogadores que podem dar certo depois nos maiores, expandirem a marca, fazerem ações de marketing conjuntas e compartilharem práticas de gestão.
“As empresas enxergam mercados estratégicos. Por trás da decisão de comprar ou vender um clube existem muitas variáveis. Nos Estados Unidos há a compra e venda de franquias de esporte como um negócio que vai gerar valor para o grupo. É aumentar o valor e revender. Mas se você olhar para o México, por exemplo, grandes empresas do país têm clubes de futebol como investimentos estratégicos. Não é por causa do lucro, mas é para abrir portas em mercados”, diz o advogado Eduardo Carlezzo, autor do livro “Direito Despotivo Empresarial”, a ser relançado neste ano.
O maior exemplo atual de abertura de novos mercados e expansão da marca é o City Football Group. A holding é dona de Manchester City (ING), New York FC (EUA), Girona (ESP) e Melbourne FC (AUS). Mas também tem participação no Yokohama Marinos (JAP), Atlético Torque (URU) e Sichuan Jiuniu (CHN). De acordo com a imprensa britânica, está próxima ainda de ter um clube na liga da Índia.
Com a variedade de clubes, o City Football Group tem fechado acordos globais de patrocínio. A Puma acertou contrato para fornecer o material esportivo das equipes da companhia por 10 anos pagando 600 milhões de libras (cerca de R$ 3 bilhões). A joia da coroa é o Manchester City, atual bicampeão inglês e que está na Champions League. O mesmo aconteceu com a Nissan, fabricante de carros.
É o caso do Atlético de Madri, que em 2017 anunciou a compra de 50% da propriedade do Atlético San Luis, do México.
“São muitas vezes investimentos baixos. O City Football Group comprou um time da 3ª divisão chinesa com uma empresa bilionária do país, a China Media Capital. O que parece é que nesses países mais populosos estão tomando decisões estratégicas e buscando sócios estratégicos”, completa Carlezzo.
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