Antes de provocar ira da China, cartola revolucionou o jogo na NBA

Daryl Morey pôs estatísticas e arremessos de três no centro da liga de basquete

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São Paulo

Daryl Morey, 47, construiu toda a sua carreira colocando o cálculo à frente do instinto. Até o início deste mês.

O tuíte dele que abalou as relações comerciais da NBA com a China e pôs em xeque o lucro oferecido pelo maior mercado internacional da liga americana de basquete configura uma notória exceção na trajetória do executivo, especialista em estimar relações de causa e consequência a partir de uma extensa base de dados.

Ao publicar a mensagem “lute pela liberdade, fique com Hong Kong”, apoiando protestos no território, o gerente-geral do Houston Rockets desencadeou uma crise cujo alto preço ainda está sendo mensurado.

Tivesse submetido a publicação a um de seus avançados sistemas de informática, o dirigente provavelmente teria desistido de passar adiante um recado que depois decidiu apagar.

Antes de irritar o governo chinês e causar a tensão diplomática que a NBA tenta superar, Morey mudou a cara do basquete. Pioneiro ao colocar a análise de estatísticas como ponto central na preparação das equipes e na construção dos elencos, ele teve papel decisivo na formatação do estilo adotado universalmente na liga hoje, baseado em arremessos de três pontos.

Já são sete temporadas consecutivas de recordes quebrados nas tentativas e nos acertos nesse tipo de lance. O jogo é bem diferente do observado em 2007, quando os Rockets surpreenderam ao anunciar um cientista da computação de 35 anos para seu mais importante cargo de direção.

Ele era tão desconhecido que os jornais do Texas tiveram de buscar fotos no Facebook para ilustrar as reportagens de sua contratação.

Naquele momento, os cargos de gerente-geral da NBA eram basicamente ocupados por ex-jogadores e ex-treinadores. Formado em administração, com um MBA no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), ele entrou no esporte no Boston Celtics, por meio de uma empresa que prestava consultoria ao grupo que comprou o time.

Depois de ganhar algum espaço na equipe, foi levado a Houston, onde rapidamente recebeu a responsabilidade de gerir o elenco como gerente-geral. Morey fez, então, o que era considerado um altíssimo investimento em servidores, necessários para armazenar horas de vídeo digital, e em pessoal especializado a trabalhar com base de dados.

“O Daryl esteve à frente da adoção universal pela liga da análise de estatísticas”, diz Bob Myers, gerente-geral do Golden State Warriors, que construiu uma dinastia e levantou três troféus com base nos arremessos de três de Stephen Curry e Klay Thompson.

Antes de os lançamentos de longe virarem regra, Morey chegou à conclusão de que eles eram mais eficientes do que os arremessos de média distância (com valor de dois pontos). Daí surgiu o que passou a ser chamado de “Moreyball”, o estilo de jogo que agora domina a NBA.

Não foi a única inovação do dirigente, que percebeu que eram obsoletos os modelos estatísticos usados no esporte. Em vez de registrar os pontos por jogo de cada jogador, por exemplo, ele passou a tabular os pontos por minuto. O tradicional modelo de rebotes por partida deu lugar a um levantamento de quantos rebotes o atleta pega dentre aqueles que estão ao seu alcance.

É dado ainda a Morey o crédito por uma estatística hoje altamente difundida na NBA, chamada de “true shooting percentage” ou “verdadeira porcentagem nos arremessos”. A equação leva em conta lances livres e dá um valor maior aos acertos de três pontos, que efetivamente têm maior valor no placar.

O que causou estranheza em 2007 acabou sendo difundido por toda a liga, com alto investimento em departamentos de análise de desempenho e em arremessadores. Além do preconceito com a matemática, ficou para trás o velho domínio dos pivôs, que tiveram de se adaptar e aprender a jogar longe do garrafão, seu antigo habitat.

Daryl Morey tem papel importante na adoção do estilo de jogo que domina a NBA - Troy Taormina - 22.dez.18/USA Today Sports

Uma geração de arremessadores talentosos certamente ajudou, mas a mudança tem tudo a ver com os dados de Morey –ligado à cultura “geek” a ponto de abraçar o apelido “Dork Elvis”, algo como “Elvis Nerd”. Também chamado de “Deep Blue”, referência ao computador da IBM que chegou a derrotar o melhor jogador de xadrez do mundo nos anos 1990, ele vê desde criança a matemática como uma arma.

“Isso sempre foi a coisa mais legal para mim. Como você usa números para prever coisas? Era legal usar os números para ser melhor do que as outras pessoas. Eu sempre gostei muito de ser melhor do que os outros. E era sempre o esporte que eu tentava prever”, contou no livro “O Projeto Desfazer”, de Michael Lewis.

Em 1987, a previsão esportiva tradicional não funcionou. Uma capa da revista Sports Illustrated apontou o Cleveland Indians, time do qual Morey era fã, como favorito ao título da liga americana de beisebol. Os Indians ficaram em último lugar e fizeram o torcedor de 15 anos duvidar dos especialistas.

Foi com essa ideia que, já no século seguinte, ele entrou no mundo dos esportes. Na escolha dos jogadores que formam o elenco do Houston Rockets ou no prognóstico sobre os principais concorrentes ao título da NBA, o cientista não esquece a velha decepção e prefere consultar suas tabelas a olhar capas de revista.

“Confio muito pouco no instinto”, diz o executivo, para quem o apego aos números não limita sua criatividade. No ano passado, por exemplo, ele produziu a peça de teatro “Small Ball”, um elogiado musical de basquete.

Nas quadras, o trabalho do dirigente vem rendendo boas campanhas ao Houston, mas o limite na sua administração foram as finais da Conferência Oeste, alcançadas em 2015 e em 2018. Eleito executivo do ano da NBA em 2018, o cartola ainda busca o primeiro título para colocar no currículo.

A equipe estreia na temporada 2019/20 nesta quinta-feira (24), contra o Milwaukee Bucks.

 
 
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