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Com alta da extrema direita, Itália vê racismo reincidente no futebol

País teve 5 casos de injúrias raciais na atual temporada da primeira divisão

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Milão (Itália)

Num sábado à tarde, meninos na faixa de dez anos entraram em campo em Brianza, no norte da Itália, para uma partida de futebol. Chamados de "pulcini", ou pintinhos, em italiano, eles representavam os clubes Aurora Desio e Sovicese. Em algum momento, o jogo esquentou e uma torcedora do Sovicese gritou para um jogador adversário: "negro de merda".

No dia seguinte, pelo Campeonato Italiano, torcedores no estádio do Verona fizeram sons de macaco para o atacante Mario Balotelli, do Brescia, que chutou a bola para a arquibancada e ameaçou abandonar a partida.

Separados por cerca de 24 horas, os dois casos no início de novembro ilustram como o racismo persiste no futebol italiano.

Mario Balotelli, atacante italiano vítima de ofensas racistas em campo
Mario Balotelli, atacante italiano vítima de ofensas racistas em campo - Marco Bertorello - 24.set.19/AFP

Somente na série A, em 12 das 38 rodadas realizadas desde o fim de agosto, ocorreram ao menos cinco episódios de racismo. Os alvos foram jogadores negros. Além de Balotelli, o marfinense Franck Kessié, o belga Romelu Lukaku, o guineense Ronaldo Vieira e o brasileiro Dalbert Henrique estão entre as vítimas recentes.

Embora as ocorrências não estejam restritas à Itália –os brasileiros Taison e Dentinho foram alvos nos últimos dias na Ucrânia– e nem sejam novidades –em 2013 Kevin-Prince Boateng, então no Milan, também chutou a bola para a arquibancada após gritos ofensivos–, há um sentimento de que o racismo está mais frequente no futebol do país.

Segundo Marco Antonsich, professor italiano que pesquisa geografia humana na Universidade de Loughborough, na Inglaterra, o cenário na Itália é muito particular devido a duas razões: os movimentos imigratórios mais tardios em relação a outros países europeus e a popularidade atual dos partidos de direita nacionalista.

"O futebol simplesmente reflete o que acontece dentro da sociedade", afirma. "Na Itália, a situação é peculiar porque a experiência de haver uma sociedade multicultural é mais recente do que em outros países."

França e Inglaterra, por exemplo, viram a imigração crescer logo após a Segunda Guerra Mundial, devido ao passado colonial, e a Alemanha, nos anos 1950, implementou programas para atrair trabalhadores de outros países, como da Turquia.

"No caso italiano, a experiência colonial, entendida como parte do projeto fascista, foi colocada à parte no pós-guerra e não teve mais discussão", explica o professor. A Itália esteve presente em países do norte africano, como Líbia, Eritreia e Somália.

Foi só a partir dos anos 1990, com o colapso dos regimes comunistas de vizinhos como Albânia e Romênia, que a Itália passou a lidar mais intensamente com a imigração. Nos últimos anos, a crise de refugiados no mar Mediterrâneo levou o assunto para o topo das preocupações nacionais.

"Foi uma grande transformação da sociedade em um arco de pouco tempo. As pessoas estavam despreparadas na Itália, e as instituições não foram capazes de ajudar. Ao contrário, se aproveitaram do medo, como vemos hoje com alguns partidos políticos", afirma Antonsich.

Ele cita a popularidade dos partidos de direita como impulsionador de ofensas racistas. No início de novembro, a Liga, de Matteo Salvini, tinha 34,3% das intenções de voto, o maior índice, enquanto o Fratelli d'Italia, de Giorgia Meloni, tinha 9,8%.

Ambos políticos têm forte discurso anti-imigração, o que, segundo o professor, acaba por incentivar comportamentos como o da torcedora que ofendeu a criança negra há poucas semanas. Um dos slogans de Salvini é "prima gli italiani" [primeiro os italianos].

"Há uma linguagem política que legitima essas expressões de racismo. Este é o grande problema de hoje. Não quero dizer que a sociedade não era racista no passado, mas qualquer caso era considerado errado, era reprovado. Hoje, não", avalia Antonsich.

O líder da Liga, Matteo Salvini, discursa em Roma
O líder da Liga, Matteo Salvini, discursa em Roma - Remo Casilli - 19.out.19

A ligação entre nacionalismo político e futebol fica bastante explícita em alguns casos, como o de Luca Castellini, o "ultra", como são chamados os torcedores organizados extremistas, que escreveu nas redes sociais que Balotelli "nunca será totalmente italiano". O atacante nasceu em Palermo, no sul do país, filho de pais ganeses.

Castellini é um dos coordenadores do Forza Nuova, um partido minoritário neofascista, e ligado à torcida organizada Hellas, do Verona, de onde partiu a imitação de macaco direcionada ao jogador do Brescia. Ele, que já tinha sido banido dos estádios italianos até 2022, teve a pena ampliada até 2030 na arena do próprio Verona.

"Diferentemente de outros países, como a Inglaterra, que foram mais duros contra os ultras e os fenômenos de violência, não só de racismo, a Itália tem algumas boas leis, mas pouco aplicadas", diz Nicola Pasini, professor do departamento de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Milão. "Em episódios de racismo durante as partidas é preciso interromper totalmente o jogo."

Em janeiro deste ano, a Federação Italiana de Futebol (FIGC) atualizou regras para coibir casos de discriminação nos estádios, com mais detalhes sobre procedimentos e responsabilidades em casos de faixas e gritos ofensivos. A partida não deve iniciar enquanto atos não pararem e pode ser suspensa definitivamente.

Mas, segundo os especialistas, só o campo legal, punitivo, não é suficiente. Pasini diz que a diminuição do racismo, não apenas no futebol, passa pela necessidade de uma reconstrução nacional.

"Em 60 milhões de habitantes, 6 milhões de pessoas não fazem parte, digamos assim, da Itália no senso histórico", afirma.

Antonsich concorda e sugere inclusive a reforma do currículo escolar. "A história da Itália deve inserir a história da imigração. É preciso reescrever a ideia de nação, reescrever o que quer dizer ser italiano. Não se pode continuar a dizer que a Itália é feita só de cristãos e brancos."

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