Famílias das vítimas de Hillsborough têm nova questão sem resposta

Responsável por segurança de jogo do Liverpool que teve 96 mortos, em 1989, foi inocentado

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Rory Smith
The New York Times

Já faz mais de 30 anos que 96 torcedores do Liverpool foram a um jogo de futebol e não voltaram para casa. Há 30 anos, as famílias das vítimas lutam não só com a dor e angústia de suas perdas mas para descobrir por que seus pais, irmãos e filhos morreram naquele dia –de que forma foi permitido que o desastre de Hillsborough acontecesse.

As famílias das vítimas batalharam para reverter o mito de que a torcida do Liverpool mesma era responsável pelo ocorrido. Lutaram para reverter a conclusão inicial do legista, que determinou “morte acidental”, como se a morte de 96 pessoas fosse uma dessas coisas que simplesmente acontecem. E se esforçaram por estabelecer um inquérito independente sobre os acontecimentos do dia 15 de abril de 1989, e por promover uma nova investigação sobre o desastre.

Elas batalharam, e venceram. Quando o inquérito reportou suas conclusões, em 2012, isso resultou em um pedido de desculpas formal, no Parlamento, pelo então primeiro-ministro David Cameron, que mencionou uma” dupla injustiça”: tanto a “injustiça dos eventos chocantes” quanto “a injustiça de as vítimas terem sido denegridas”.

Torcedores do Liverpool homenageiam os 96 que morreram em jogo da equipe pela FA Cup de 1989
Torcedores do Liverpool homenageiam os 96 que morreram em jogo da equipe pela FA Cup de 1989 - Jason Cairnduff/Reuters

O relatório final sobre o inquérito, publicado em 2016, registrava que as 96 pessoas mortas naquele dia haviam sido vítimas de “morte por negligência”. As famílias por fim começaram a encontrar respostas.

Elas esperavam que o julgamento de David Duckenfield, o comandante de polícia que estava encarregado da segurança do jogo naquele dia, oferecesse a confirmação final quanto ao responsável pelas mortes. Um julgamento anterior, realizado alguns meses atrás, foi concluído sem que o júri conseguisse chegar a um veredicto.

Nesta quinta-feira (28), no tribunal de Preston, depois de sete semanas de audiências e de mais de 13 horas de deliberação, o novo julgamento chegou enfim a um veredicto: Duckenfield foi considerado inocente da acusação de homicídio culposo por grave negligência. É uma resposta, mas para as famílias isso só criou uma nova pergunta.

Quando o veredicto foi anunciado, Chrissie Burke –cujo pai, Henry Burke, foi uma das vítimas fatais no desastre causado pela superlotação de certas áreas do estádio Hillsborough antes de uma partida da FA Cup –se levantou na galeria de espectadores e disse: “Eu gostaria de saber quem foi o responsável pela morte do meu pai. Porque alguém foi”.

Margaret Aspinall perdeu o filho James Aspinall, que tinha 18 anos, no desastre. “Noventa e seis pessoas foram mortas por negligência, e no entanto ninguém é considerado legalmente responsável por isso”, disse Aspinall, presidente do Grupo de Apoio às Famílias de Hillsborough. “A pergunta que eu gostaria de fazer a todos vocês, e às pessoas de dentro do sistema, é: quem levou aquelas 96 pessoas à morte? Quem é responsável?”

Para as famílias, o medo agora é de que essa questão fique para sempre sem resposta. Um porta-voz da promotoria da coroa britânica deixou claro, depois do anúncio do veredicto, que isso não afetava as conclusões do inquérito, e não alterava o fato de que as vítimas de Hillsborough haviam sido mortas por negligência. A defesa de Duckenfield dependia do argumento de que era “injusto” fazer dele o “foco da culpa” quando “há tantas outras pessoas culpadas, tantas causas”.

No julgamento anterior de Duckenfield, o júri considerou Graham Mackrell, secretário e diretor de segurança do Sheffield Wednesday, o clube que era dono do estádio de Hillsborough, culpado de negligência na proteção aos torcedores que estavam na área de Leppings Lane do estádio, onde ocorreu o desastre.

Ele foi multado em 6,5 mil libras e a pagar custas de cinco mil libras. O juiz naquele julgamento, Sir Peter Openshaw, enfatizou, ao sentenciá-lo, que Mackrell não havia sido considerado culpado por causar a morte dos 96 torcedores.

E assim as famílias das vítimas agora precisam encarar a realidade que o tribunal lhes apresentou. As 96 pessoas que morreram são vítimas de morte por negligência, mas o mais provável é que ninguém venha a ser considerado como legalmente responsável por isso.

“Disseram-nos que não havia aonde levar o nosso caso”, disse Jenni Hicks, cujas filhas adolescentes, Sarah Hicks e Vikki Hicks, morreram no desastre. “Não há a quem recorrer. Temos de viver o resto de nossas vidas sabendo que pessoas que amamos foram mortas por negligência e que ninguém será responsabilizado por essa negligência. Isso não está certo.”

O instinto das famílias, evidentemente, é o de continuar lutando. Foi isso que elas sempre fizeram. Foi isso que elas perceberam há muito tempo que precisavam fazer. Aspinall, em entrevista à rede interna de mídia do Liverpool, disse acreditar que “mudar o sistema neste país”, para que não haja “uma lei para mim e uma lei para os outros”, seria “um belo legado” para aqueles que morreram.

Familiares das vítimas concederam entrevista coletiva e expressaram a indignação com o veredicto
Familiares das vítimas concederam entrevista coletiva e expressaram a indignação com o veredicto - Paul Ellis/AFP

A importância do desastre de Hillsborough para o futebol inglês não pode ser subestimada. O relatório oficial sobre as causas do desastre, publicado em 1990, resultou em mudanças fundamentais na organização do esporte, não só na forma pela qual os jogos são policiados e os torcedores tratados, mas também nos estádios em que as partidas são realizadas.

No caso de Hillsborough, é por conta da luta das famílias por justiça que sabemos o que hoje sabemos: os 96 torcedores não foram mortos por conta de embriaguez ou arruaças, e não foram de alguma maneira cúmplices em suas mortes. Morreram por conta da incompetência das pessoas encarregadas de protegê-los, por causa dos “erros” que Duckenfield admitiu ter cometido naquele dia, durante o inquérito.

Foi o apetite das famílias por estabelecer a verdade que levou a cortina a ser erguida; sua busca de justiça resultou em respostas para todo o país.

“Culpo o sistema, que é tão moralmente errado neste país”, disse Aspinall em uma entrevista coletiva na quinta-feira, depois do anúncio do veredicto de que Duckenfield havia sido inocentado. “Se não foi ele, quem? O que isso diz sobre o estado do país e da lei?”

Mesmo agora, passados 30 anos, tudo que resta a ela –tudo que resta a todas as famílias das vítimas– são perguntas sem resposta.

Tradução de Paulo Migliacci

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