Descrição de chapéu GP Brasil 2019 Velocidade

Títulos encorajam Hamilton a se engajar na luta contra o racismo

Avesso ao ativismo no início da carreira, hexacampeão mudou postura após a fama

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São Paulo

O hexacampeão de F-1, Lewis Hamilton, 34, tem uma série de tatuagens pelo corpo. Na primeira delas, feita em 2015, está escrito “Still I rise” (“Ainda me levanto”, em português), título de um poema de Maya Angelou (1928-2014), escritora negra e ativista em prol dos direitos humanos.

“Trazendo os dons dos meus antepassados eu sou o sonho e as esperanças dos escravos. Eu me levanto”, diz o poema. 

Carregar a expressão tatuada em suas costas foi uma das primeiras atitudes públicas do piloto inglês em defesa da igualdade racial.

Hamilton em evento antes do GP Brasil
Hamilton em evento antes do GP Brasil - Amanda Perobelli - 13.nov.2019/REUTERS

Em quase 13 anos na principal categoria do automobilismo, Hamilton levou a metade deste tempo para começar a falar abertamente sobre as questões que o preocupam, como racismo e meio-ambiente.

A mudança de postura ocorreu depois de uma troca de equipe, quando deixou a McLaren, em 2012, rumo à Mercedes. Na primeira escuderia da sua carreira, ele vivia tutelado pelo diretor Ron Dennis, considerado um gestor linha dura e que controla as ações de seus pilotos dentro e fora das pistas na F-1.

Na Mercedes, o atual hexacampeão passou a ter maior liberdade para se expressar e assumir um perfil ativista, algo que ficou mais evidente na temporada de 2019, vencida por ele. Neste domingo (17), ele disputa o GP Brasil, às 14h10, em São Paulo.

Quando tinha 14 anos, o inglês disse acreditar que a ausência de pilotos negros na F-1 era uma questão de tradição. “Os negros não se interessam por automobilismo”, disse, numa contradição ao gosto que o próprio piloto tinha desde a sua própria infância.

Ao chegar à elite do automobilismo, em 2007, já com 21, ele se esquivava das perguntas sobre o fato de ser o primeiro negro na categoria.

“Quando estou em uma corrida, não penso ‘oh, sou o único negro aqui’”, disse naquele ano, segundo a biografia não-autorizada “Lewis Hamilton – Cinco vezes campeão do mundo”, de 2018, escrita pelo jornalista inglês Frank Worral.

O autor conta que Hamilton conviveu com o fato de ser o único piloto negro em um grid desde o kart. “Como algumas crianças eram imaturas, a estranha coisa do racismo surgia. Mas eu canalizei as agressões. Fui ensinado que a melhor maneira de vencê-los é na pista”, disse o piloto, em trecho do livro.

Para o chefe da equipe Mercedes, Toto Wolf, o britânico ainda carrega as marcas do preconceito que sofreu. “Se isso [racismo] acontece com uma criança de oito, nove, dez anos, deixa cicatrizes que não desaparecem”, afirmou o dirigente em outubro deste ano.

Nascido em Stevenage, ao norte de Londres, Hamilton viveu em moradias populares na infância. Já na F-1, foi alvo de injúrias raciais em 2008, durante os testes para a temporada na Catalunha. Fãs do espanhol Fernado Alonso se pintaram de preto e vestiram camisetas com a frase “familiares de Hamilton” escrita.
“Me sinto triste”, disse o britânico, que evitou falar mais sobre o caso na época.

De acordo com jornalistas ingleses que acompanham a carreira do hexacampeão mundial, ele começou a expressar suas opiniões depois de ter conquistado a confiança no meio da Fórmula 1.

Nesta semana, por exemplo, o britânico destacou a importância de debater o preconceito racial. “Na escola só aprendi a ‘história branca’. Nunca me contaram nada sobre minha cultura. Meus pais me contaram sobre minha história, porque eles queriam falar sobre a cultura deles”, disse o piloto ao site Motorsports.

Presidente do Geledés (instituto focado na mulher negra), Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, compara a postura de Hamilton com a cantora norte-americana Beyonce.

“Em alguns meios, como o esporte, o artístico, as pessoas que levantam bandeiras acabam sendo malvista. Nos Estados Unidos, a Beyonce passou a falar sobre racismo depois que ela se tornou um ícone”, explica Oliveira.

Para ela, os “negros em lugar de destaque” precisam se posicionar. “Para você combater qualquer mal, é preciso nominá-lo”, disse Oliveira, que também é ex-vice-presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, da OAB-SP.

Nos EUA, há um histórico maior de atletas engajados em causas sociais. O último caso de maior repercussão foi o do jogador de futebol americano Colin Kaepernick. Então no San Francisco 49ers, em 2016, o quarterback se recusou a ficar de pé durante a execução do hino nacional dos Estados Unidos em protesto contra as ações de policiais que usavam força excessiva em operações contra suspeitos negros.

“Não vou me levantar e mostrar orgulho por um país que oprime o povo negro”, afirmou Kaepernick.
O atleta foi repreendido pelo presidente dos EUA, Donald Trump, que chegou a pedir à NFL a demissão de jogadores que repetissem o ato em partidas da liga.

A empresa de material esportivo Nike, no entanto, comprou a causa de Kaepernick e o convidou para ser o rosto de sua campanha em comemoração aos 30 anos do slogan da marca “Just Do It.”

“O engajamento dos atletas americanos é uma questão de educação escolar. Os esportistas de elite dos Estados Unidos são formados nas universidades. Então, ele tem uma bagagem com disciplinas como sociologia, filosofia, nas quais ele aprende sobre as questões sociais”, afirma Selma Felerico, doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP.

Segundo a especialista, as grifes nos EUA também estão mais envolvidas com questões sociais do que, por exemplo, as empresas inglesas.

“As marcas [americanas] estão atentas as questões que estão sendo discutidas na sociedade, como o feminismo, por exemplo, e elas vão passar a retratar isso. Na Inglaterra, esse envolvimento é bem menor”, completa.

A versão engajada de Hamilton é vista com desconfiança por parte dos fãs de F-1 no seu país, onde ele é acusado”até de ter sotaque americano. 

O tema foi questionado pela mídia britânica. Um jornalista perguntou como o piloto se sentia ao ler e ouvir comentários de que ele se distanciava do seu país ao falar com sotaque dos EUA e morar em Mônaco.

“É uma loucura, porque me lembro de ter crescido e assistido a Jenson Button [piloto inglês e branco] e todos os jovens que chegavam [na F-1] e migravam para Mônaco”, disse Hamilton. “Ninguém nunca disse nada”, completou. 

Foi a senha para Rio Ferdinand, ex-capitão da seleção inglesa defender o piloto. “Não podemos ignorar o nível de desrespeito e tom racista de quem questiona o patriotismo de Hamilton”, afirmou. 

O piloto disse não haver ninguém que tenha levantado tanto a “bandeira britânica com orgulho” como ele.
Também levantou a hipótese de que teria maior reconhecimento em seu país se a cor da sua pele fosse outra. “Talvez as coisas fossem diferentes se eu fosse branco.”

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