A pouco mais de sete meses dos Jogos Olímpicos de Tóquio, o treinador da seleção brasileira masculina de vôlei, Renan Dal Zotto, que também comanda a equipe do Taubaté na Superliga masculina, arrumou um tempo livre na agenda de competições para lançar seu novo livro, “Ninguém é campeão por acaso”.
O ex-jogador de 59 anos divide a obra no que chama de “seis princípios inegociáveis para o alto rendimento”: paixão, treinamento, renúncia, ousadia, resiliência e planejamento.
Em cada um dos capítulos, ele aborda esses temas e os relaciona a fatos de sua trajetória como jogador, técnico e gestor ligado ao esporte.
Em vários momentos do livro, Renan destaca o papel desempenhado por Carlos Arthur Nuzman, ex-presidente da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV), para o surgimento da chamada Geração de Prata (medalhista na Olimpíada de 1984) e a consequente popularização da modalidade no país.
O técnico não faz referências a outros momentos da trajetória de Nuzman, que presidiu o Comitê Olímpico do Brasil (COB) de 1995 a 2017, quando renunciou após ser preso, acusado de comprar votos para a escolha do Rio de Janeiro como sede dos Jogos de 2016. Atualmente, o ex-cartola, que afirma ser inocente, é réu nesse processo.
“Lamento profundamente que ele esteja envolvido em supostas denúncias. Se tiver que responder por alguma coisa que tenha ocorrido, que responda, ou que se prove que não tem nada, mas o fato é que nada vai apagar tudo o que ele fez pelo voleibol lá atrás”, disse Renan à Folha na segunda (2), durante o lançamento da obra em São Paulo.
“Tenho muita honra de ter trabalhado com ele, por isso fiz questão de colocá-lo no livro.”
Quem também aparece com deferência nas páginas escritas pelo ex-atleta é Bernardinho, seu grande amigo desde a juventude. Foi na companhia dele que o autor precisou pegar carona em um caminhão do Exército russo durante a Olimpíada de Moscou-1980, quando a dupla ficou treinando no ginásio até mais tarde e perdeu o ônibus para a vila dos atletas.
Bernardinho também esteve muito próximo do amigo durante o período em que Renan e a mulher, Annalisa, enfrentaram o diagnóstico de leucemia do filho Gianluca nos anos 1990. Essa é a parte do livro em que o treinador revela seu lado mais emocional.
Na época, o casal morava em Santa Catarina e pegou um avião para iniciar o tratamento da criança de 2 anos e meio no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
“Houve um momento que eu nunca mais esqueço. Nós três ali, a Annalisa chorando, e nós desejamos, dentro daquela loucura, daquele desespero, que o avião caísse. Para nós, não havia mais volta, e o certo era que a gente fosse embora junto com nosso filho”, ele escreve no capítulo sobre resiliência.
Gianluca respondeu bem ao tratamento, chegou a jogar vôlei na adolescência e hoje é engenheiro de produção. O casal tem outro filho, Enzo, produtor musical e DJ.
Renan conversa com Bernardinho, seu antecessor no comando da seleção brasileira e técnico da equipe feminina do Sesc-RJ, praticamente todos os dias.
“A gente debate muito sobre vários assuntos e nos consultamos", conta. "Não quer dizer que estamos sempre alinhados, e essa é a parte legal. Inclusive, nas minhas comissões técnicas, sempre preciso de alguém que vá me fazer pensar, não só de pessoas que digam amém para mim.”
Em 2017, quando o atual comandante da seleção masculina substituiu o amigo na função, questionou-se o fato de que ele não treinava uma equipe havia oito anos. O próprio Renan era reticente com a ideia de assumir o cargo e afirma ter sido convencido por outro nome histórico do voleibol brasileiro, o tricampeão olímpico José Roberto Guimarães, técnico da seleção feminina.
No livro, ele relata que, durante um almoço para o qual foi convidado pela cúpula da CBV no início daquele ano, Zé Roberto o questionou: “O que o vôlei deu para você?”. A resposta: “Tudo, absolutamente tudo”. No que recebeu a tréplica: “Então, está na hora de você retribuir. O vôlei está precisando de você”. Foi o empurrão que faltava.
Renan admite que no início do novo trabalho se viu cercado de incertezas e “na zona de desconforto”, mas após quase três anos enxerga um bom caminho pavimentado para Tóquio. No maior torneio deste ciclo olímpico, a seleção foi vice-campeã mundial em 2018, derrotada pela Polônia. Em outubro deste ano, conquistou seu principal título do período, a Copa do Mundo.
Com o Taubaté, clube que é a principal potência do país atualmente e a quem o treinador se juntou em fevereiro para estar mais próximo dos atletas brasileiros, venceu a última edição da Superliga.
Na próxima terça-feira (10), Renan receberá pela segunda vez consecutiva o prêmio de melhor técnico do ano no esporte nacional, escolhido pelo COB. Todos esses fatores justificam o otimismo com a participação da seleção masculina nos Jogos de 2020, mas o comandante usa o título do próprio livro para invocar cautela.
“Nada acontece por acaso, então a gente não pode ficar sentado em cima de títulos passados, história e grandes atletas. Precisamos trabalhar. O que os jogadores se predispõem a fazer no dia a dia é que vai fazer toda a diferença”, afirma.
Outras passagens do livro de Renan
Manifesto de Miami
Na preparação para a Olimpíada de Seul-1988, a seleção era treinada pelo sul-coreano Young Wan Sohn. Diante dos maus resultados, incluindo um set perdido por 15 a 0 para os EUA durante torneio amistoso em Miami, os jogadores se rebelaram com a filosofia de jogo do comandante, e Renan ficou responsável por redigir uma carta solicitando a saída do treinador, o "Manifesto de Miami".
"O noticiário exibiu trechos da nossa carta em tom de crítica. Até um especialista em língua portuguesa foi entrevistado, dizendo que havia problemas de pontuação e concordância no texto. [...] Fomos chamados até de mercenários, principalmente os atletas mais experientes, porque muito antes desse fato havíamos reivindicado um aumento salarial à CBV", escreve Renan no livro.
Nuzman, então presidente da confederação, bancou Sohn, que cortou os jogadores mais tarimbados e chamou um grupo de novatos. Como os resultados continuaram ruins, o dirigente deu o braço a torcer, demitiu o sul-coreano a um mês dos Jogos e trouxe de volta o técnico da Geração de Prata, Bebeto de Freitas. Com quase todos os veteranos da época reconvocados, a equipe acabou em quarto lugar.
Cirurgia espiritual
A 15 dias da Olimpíada de 1984, marcada pela conquista da medalha de prata, Renan sofreu uma contusão séria no tornozelo. Os médicos que consultou foram taxativos: ele não teria a menor condição de disputar os Jogos. Viajaria aos EUA no máximo como um acompanhante do grupo, já que não era mais possível trocar atletas da lista.
Aconselhado por Vera Mossa, então jogadora da seleção feminina, ele procurou um médium que tinha experiência com atletas e poderia cuidar do seu caso.
"Durante a cirurgia espiritual, ele fazia todos os movimentos e gestos como se tivesse me operando no plano físico. Quando terminou, disse que eu teria que fazer muitas sessões de fisioterapia. Eu obedeci e fiz tudo. [...] Faltando apenas alguns dias para o começo dos Jogos, eu já não sentia a mesma dor", relata Renan, que só estreou depois das primeiras partidas.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.