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Notícia falsa em tragédia faz Liverpool boicotar tabloide há 30 anos

Cobertura do The Sun no caso Hillsborough trouxe informações inverídicas em 1989

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Caio Carrieri
Liverpool

Na Kop, arquibancada mais vibrante de Anfield, casa do Liverpool, os torcedores agitam orgulhosamente dezenas de bandeiras antes de cada apito inicial. Elas reverenciam ídolos da gloriosa história de quase 130 anos do clube. Uma das flâmulas, no entanto, simboliza a dor e o clamor por justiça que também marcam a identidade da equipe inglesa. “Don’t buy The Sun [não compre o Sun —tabloide inglês]”, estampa.
 
Além do estádio, a frase se espalha por pubs, pontos de ônibus, bancos de praça e até táxis carregam a mensagem. Abraçado pela cidade há mais de 30 anos, o boicote ao tabloide remete à maior tragédia da história do futebol inglês —neste sábado (21), o Liverpool decide o Mundial com o Flamengo, às 14h30 (de Brasília). O duelo terá transmissão ao vivo pela TV Globo e SporTV.
 
Em 15 de abril de 1989, 96 torcedores do Liverpool foram a uma partida de futebol e não voltaram para casa. Naquela ensolarada tarde de primavera, o time enfrentaria o Nottingham Forest em Hillsborough, estádio do Sheffield Wednesday, pela semifinal da Copa da Inglaterra.

O jogo foi abandonado aos 6 minutos porque uma superlotação na Leppings Lane, setor atrás de um dos gols, causou a morte por esmagamento e asfixia de 95 torcedores do Liverpool. Outros 400 ficaram feridos. A 96ª vítima fatal morreu depois de ficar internada em estado vegetativo por quatro anos.
 
Quatro dias após o desastre, o “The Sun” trouxe na na sua capa a manchete “A verdade”. Era a chamada para uma reportagem com alegações posteriormente comprovadas como mentirosas contra os torcedores. 

“Alguns furtaram pertences dos corpos das vítimas, outros urinaram em policiais e também agrediram bombeiros que faziam respiração boca a boca”, dizia o texto. Também denunciava supostos hooligans embriagados que teriam causado os acidentes fatais.
 
A versão caluniosa dos fatos partiu de forma anônima da polícia de South Yorkshire, responsável pela segurança da partida, na tentativa de se livrar da culpa pela falha no planejamento e execução do esquema do evento que recebeu 54 mil espectadores.
 
O comandante David Duckenfield foi apontado como chefe do policiamento apenas 19 dias antes da partida. Ele sequer visitou o estádio antes de autorizar o plano de operação. A logística adotada destinou somente sete catracas para a entrada de mais de 10 mil torcedores do Liverpool.
 
Diante do gargalo a poucos minutos do início da semifinal, ele ordenou a abertura dos portões. Porém, a versão repassada pela polícia a uma agência de notícias de Sheffield e publicada pelo The Sun foi de entrada forçada pelos aficionados. Mesmo com falta de provas e checagem devida dos fatos, o tabloide apostou na manchete.

Cartazes contra o tabloide britânico The Sun em Liverpool, após a tragédia de Hillsborough
Cartazes contra o tabloide britânico The Sun numa casa em Liverpool, em razão da reportagem publicada após a tragédia de Hillsborough - Reprodução

A cidade de Liverpool, de luto, reagiu de forma imediata. Em uma mobilização popular, recolheram-se jornais por quiosques da cidade e atearam fogo, um gesto significativo na história de protestos da Inglaterra. Desde a década de 1930 não acontecia algo parecido

Naquela época, no leste de Londres, área conhecida por receber a comunidade judaica, queimaram centenas de edições do tabloide Daily Mail, que havia apoiado em sua capa Oswald Mosley, parlamentar declaradamente fascista.
 
Paralelamente à luta da família das vítimas de Hillsborough por justiça, a cidade boicota o The Sun há mais de três décadas —não só deixa de comprá-lo, como existe um movimento para a publicação sequer ser exposta nas lojas.
 
Propriedade do magnata australiano Rupert Murdoch, o jornal era o mais popular do país na época da tragédia. Antes de Hillsborough, no condado de Merseyside, onde fica Liverpool, o The Sun vendia 120 mil cópias por dia. Pouco depois da capa sobre a tragédia, esse número caiu para 30 mil. Atualmente, não ultrapassa 2 mil.
 
“Inventaram um monte de mentiras para manchar a reputação do nosso povo”, afirma Peter Carney, sobrevivente de Hillsborough que estava no setor onde houve as mortes. 

Ele só sobreviveu porque colegas o puxaram para cima no meio da multidão e o carregaram desmaiado e inconsciente para fora do estádio.

“Nunca mais vi aquilo [The Sun] em Liverpool e desse jeito está ótimo para mim. É assim que tem de ser”, diz.
 
Membro do “Spirit of Shankly”, organização de torcedores mais combativa do Liverpool, Carney é uma figura popular na Kop. Responsável pela criação de várias bandeiras ao longo dos anos, homenageou a Chapecoense e prestou seu tributo, em Anfield, aos dez jovens do Flamengo mortos no Ninho do Urubu em fevereiro desse ano.
 
“Podemos estar separados por milhares de quilômetros, mas reconheço a dor e o sofrimento. Por isso os meus gestos de solidariedade nesses momentos terríveis”.
 
Um memorial na parte de fora de Anfield leva o nome das 96 vítimas de Hillsborough, cuja idade variava entre 10 e 67 anos. O clube ainda leva duas chamas no símbolo como lembrança da catástrofe.
 
“A campanha por justiça é parte do DNA do Liverpool”, analisa Peter Hooton, outro membro do “Spirit of Shankly” e que estava presente em Hillsborough, mas na arquibancada do meio do campo. “É um enorme senso de solidariedade da classe trabalhadora que construiu a história da cidade, baseada na luta contra o autoritarismo”.

 
Ato em memória aos mortos da tragédia de Hillsborough, antes de um jogo do Liverpool, em 2017
Ato em memória aos mortos da tragédia de Hillsborough, antes de um jogo do Liverpool, em 2017 - Jason Cairnduff - 5.abr.2017/REUTERS

O boicote não se restringe apenas a quem é do Liverpool. Torcedores do rival Everton também abraçaram a causa. Em 2017, após pedido das famílias das vítimas e campanha popular, os dois clubes da cidade baniram repórteres do veículo das suas dependências, tanto dos estádios quanto dos centros de treinamentos.
 
O Everton aderiu à decisão depois que o jornalista Kelvin MacKenzie, ex-editor do The Sun e autor da capa “A verdade”, escreveu um texto racista. Não mais no posto de chefe, mas como colunista, comparou Ross Barkley, jogador inglês então do Everton e neto de nigeriano, a um gorila.  
 
Ao longo dos anos, MacKenzie se desculpou pela cobertura do desastre, mas voltou atrás com a alegação de que a retratação havia sido uma ordem de Rupert Murdoch, dono do tabloide.
 
“As mentiras venenosas publicadas transferindo responsabilidade para as vítimas são um dos pontos mais baixos do jornalismo britânico”, afirma David Conn, repórter investigativo do The Guardian e que acompanha o caso de Hillsborough, ainda sem resolução, há 23 anos. “Você tem de se esforçar muito, voltar bastante no tempo, talvez só no pós-guerra para encontrar algo pior na história jornalística do Reino Unido”.
 
Referência na cobertura de Hillsborough, Conn desenvolveu uma relação de muita confiança com os moradores da cidade e, sobretudo, com as famílias das vítimas. 

“A cobertura caluniosa machucou demais os afetados pela tragédia. Os sobreviventes também carregam, mesmo que de forma injusta, uma culpa interna por terem sobrevivido. Inventaram uma narrativa de que o comportamento dos torcedores contribuiu para as mortes, mas isso está longe de ser a verdade”, continua. “Não tenho dúvidas de que essa lenda criada contribuiu para a injustiça até os dias de hoje”.
 
Em 2012, o então primeiro-ministro David Cameron, do Partido Conservador, fez um pedido de desculpas formal, no Parlamento, depois das resoluções de um inquérito conduzido por um painel independente. 

A investigação conseguiu reverter a conclusão inicial do legista, que havia determinado “morte acidental” de 96 pessoas. No discurso de Cameron, ele se desculpou pela “injustiça dos eventos chocantes” e pela “injustiça de as vítimas terem sido denegridas”. A tragédia aconteceu no governo da também conservadora Margaret Tatcher.
 
No último dia 28 de novembro, David Duckenfield, responsável por chefiar a segurança do jogo que admitira ter cometido “erros” naquele dia, foi considerado inocente da acusação de homicídio culposo por grave negligência. Um porta-voz da promotoria da coroa britânica veio a público em seguida afirmar que essa decisão não afetaria as conclusões do inquérito em andamento, tampouco o fato de que as vítimas haviam sido mortas por negligência.
 
No julgamento anterior, o júri considerou Graham Mackrell, diretor de segurança do Sheffield Wednesday, dono do estádio de Hillsborough, culpado por ter sido negligente na proteção aos torcedores do Liverpool. Ele foi multado em 6,5 mil libras (R$ 35 mil) e condenado a pagar custas de 5 mil libras (R$ 27 mil). 

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