Surfe 'de várzea' ajuda a formar brasileiros campeões mundiais

Solos irregulares que produzem ondas no Brasil tornam surfistas mais completos

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São Paulo

Pelo segundo ano seguido, o Brasil dominou a Liga Mundial de Surfe (WSL). A temporada passada foi marcada por 9 vitórias brasileiras em 11 etapas. Agora, uma inédita dobradinha no topo do ranking, com o primeiro título de Italo Ferreira, e novamente um trio do país fechou o ano no top 5.
 
Mas como o Brasil passou de coadjuvante a dominador do circuito mundial? A história tem tudo para se repetir por mais anos. Ela foi construída aos poucos.
 
O ex-treinador da seleção de base Otoney Xavier, que liderou o time brasileiro de 2006 a 2011 e viu de perto o desenvolvimento de todos os integrantes da chamada "Brazilian Storm" (Tempestade Brasileira), aponta a característica das praias do país como primordial para os surfistas aqui formados serem mais completos.
 
"Os surfistas [brasileiros] têm um diferencial importante, que é a criação em beach break. Quem aprende a surfar em beach break fica mais ágil na tomada de decisão", diz Otoney.
 
Beach break é a onda que quebra sobre fundo de areia. Como o solo muda muito e faz com que a formação da onda seja inconstante, o lugar ideal para entrar nela costuma mudar muito. Até a direção da onda se altera, e o surfista precisa se virar enquanto pega a onda, de frente ou de costas para ela.

A situação é bem diferente nas ondas de point break, com fundo de pedra, e nos reef breaks, de coral. Nessas duas condições, as ondas costumam ser maiores, e surfá-las é mais perigoso, mas elas quebram sempre no mesmo lugar.
 
Para efeito de comparação, seria como um jogador de futebol criado em campos de várzea, esburacados e com terra, que depois vai jogar em gramados perfeitos ou sintéticos. Algo que em outros tempos também fez diferença no futebol brasileiro. Para completar o aspecto varzeano no mais novo campeão mundial, Italo ainda iniciou no surfe com tampa de isopor herdada do pai pescador.

"O surfe no point break é previsível e não exige a mesma alternância que o fundo de areia. Quando trabalhei com a equipe do Equador, eu percebi como eles são acomodados por causa dessa criação em point break", relata o treinador, que passou dois anos com a seleção equatoriana, em todas as categorias.
 
"É um diferencial que os gringos não têm, Só que isso só faz diferença se o brasileiro aprender cedo, incorporar e logo começar a encarar os point breaks e as ondas mais pesadas", pondera Otoney.
 
Fábio Gouveia, 50, expoente da melhor geração do surfe brasileiro até o surgimento da atual, afirma que os atletas do país se sentem em casa em beach breaks, mas aprenderam a surfar como seus concorrentes no circuito porque passaram a viajar desde muito cedo. 
 
"O surfista brasileiro faz bem o que os gringos fazem, enquanto eles não sabem fazer bem o que a gente sabe", resume.
 
Antes mesmo da chegada da geração de Gouveia, os brasileiros começaram a viajar em busca de desenvolvimento, mas não com a frequência e o profissionalismo dos atletas atuais. Ele mesmo só conheceu o Havaí aos 18 anos.
 
No caso de Italo, esse aprendizado veio de maneira orgânica. Sobre uma tampa de isopor, o potiguar teve de se virar para aprender a surfar em três tipos de fundos.

Natural de Baía Formosa, a cerca de 100 km de Natal, Italo tinha à disposição a Praia do Mar Aberto, um clássico beach break que ajudou a afiar seu surfe para a esquerda. Na Praia do Picão, as ondas quebram sobre um fundo mesclado, com partes de areia e muitas pedras. E a Praia do Pontal tem um fundo de pedra, no qual quebram perfeitas direitas que afiaram o potente surfe de backside do campeão mundial.

O aprendizado de Italo foi importante, pois ele só ganhou sua primeira prancha aos 11 anos de idade e não teve oportunidade de começar a desbravar ondas pelo mundo afora tão cedo, o modelo que propiciou o desenvolvimento do surfista brasileiro para o alto nível.

Esse modelo apresentou-se como o ideal desde a formação de Adriano de Souza, o Mineirinho, 32, justamente quem faz o elo entre a geração passada e a atual. 
 
"Mineiro é o modelo certo, o exemplo dessa nova molecada. É um cara determinado, focado, profissional", define Gouveia.
 
Apesar do apelido, o campeão mundial em 2015 nasceu em São Paulo e começou a surfar no Guarujá. Ele foi o primeiro brasileiro a começar a buscar o aprendizado em ondas internacionais com frequência desde cedo e se firmou no circuito mundial, no qual entrou em 2005 como campeão mundial júnior e da divisão de acesso (WQS).
 
Desde que subiu para a elite, Mineirinho era o candidato a ser o primeiro brasileiro campeão do mundo. Isso aconteceu em 2015, mas ninguém contava com o fator Gabriel Medina, que "furou a fila" um ano antes.
 
Depois de aprender no beach break de Maresias, Medina fez sua primeira viagem internacional aos 10 anos de idade e não parou mais de evoluir. A formação com experiências internacionais hoje é realidade para todos os integrantes da "Brazilian Storm", e o modelo também é reproduzido por quem está no WQS.
 
Esse circuito é um prato cheio para os brasileiros, pois oferece muitos beach breaks para as disputas —na elite, apenas as etapas de Brasil, Portugal e França apresentam esse tipo de fundo. Além de ser parte da formação, esse tipo de onda é mais apropriada para o surfista soltar aéreos de onde nem se espera, e essa manobra passou a ser muito valorizada nos últimos anos.
 
"O aéreo é uma especialidade brasileira. Isso é importante no WQS, e na elite virou um diferencial e tanto para o brasileiro", afirma Gouveia.
 
O bom desempenho do país no WQS garante ainda a alta frequência de seus atletas na elite mundial. O circuito de acesso oferece 10 vagas entre os melhores todo ano.
 
O universo do surfe já está acostumado com os brasileiros no circuito, e eles também se sentem mais à vontade, tanto em competições quanto nos treinos mundo afora. A tendência é que esse domínio se perpetue.

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