Descrição de chapéu The New York Times

Ter o direito legal de morrer ajudou campeã paraolímpica a viver

Belga conquistou medalhas, mas optou pela eutanásia por não suportar mais dores

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Andrew Keh Lynsey Addario
Diest (Bélgica) | The New York Times

Taças de champanhe foram rapidamente desembrulhadas das caixas em que estavam guardadas, enchidas até a borda e distribuídas aos presentes. Dezenas de pessoas estavam no pequeno apartamento de Marieke Vervoort, sem saber bem o que dizer ou fazer. A ocasião era uma celebração, garantiu Vervoort aos convidados. Mas não era essa a sensação que eles sentiam.

Onze anos antes, Vervoort havia obtido a documentação necessária para se suicidar com assistência médica. Desde a adolescência, ela vinha combatendo uma doença muscular degenerativa que lhe tirou o uso das pernas, acabou com sua independência e lhe causava dor agoniante e incansável. A papelada lhe restituía alguma medida de controle. Nos termos da lei da Bélgica, Vervoort estava autorizada a pôr fim à sua vida na hora que quisesse.

Mas em lugar disso ela seguiu em frente –com vigor até certo ponto restaurado. Poucos anos depois de obter os papéis, ela atingiu alturas inesperadas em sua carreira como velocista em cadeira de rodas, conquistando uma medalha de ouro na Paraolimpíada de Londres-2012.

Tornou-se uma celebridade, em seu pais e no exterior. Viajou pelo mundo contando a história de sua vida, tornando-a uma narrativa inspiradora.

No entanto, ela continuava a ter os papéis. E agora, passada mais de uma década de incertezas, dores e alegrias, de desejar que sua vida acabasse e ao mesmo tempo temer a morte, Vervoort havia convidado as pessoas que amava a visitá-la em sua casa pelo mais dilacerante dos motivos: dali a três dias, ela tinha uma consulta marcada com a morte.

“É uma sensação muito, muito, muito estranha”, disse sua mãe, Odette Pauwels, contemplando a festa.
Vervoort havia chegado perto de marcar uma data para morrer em diversas ocasiões, mas sempre mudou de ideia e encontrou uma razão para adiar o momento. Alguma coisa aparecia. Surgiam conflitos. Havia outra data a esperar, surgia outra razão para viver.

Seus amigos e parentes acompanharam esse cabo de guerra por mais tempo que qualquer outra pessoa, a alternância incessante entre sua dor cada vez mais forte e quaisquer pequenas realizações que ela era capaz de experimentar no tempo, embora pequeno, que lhe restava.

Mas daquela vez Vervoort parecia decidida. Ao longo da semana anterior, ela começou a discutir o procedimento com um grau de clareza e seriedade que as pessoas que a conheciam melhor admitiram não ver com frequência.

“É algo que contemplo com expectativa”, ela disse sobre sua morte. “Aguardo a oportunidade de enfim poder descansar minha mente, enfim não sentir mais dor”. Ela se deteve. “Tudo que odeio desaparecerá”.

Marieke Vervoort celebra sua medalha de bronze na Paraolimpíada do Rio de Janeiro
Marieke Vervoort celebra sua medalha de bronze na Paraolimpíada do Rio de Janeiro - Jason Cairnduff - 17.set.16/Reuters

Atletas paralímpicos raramente desfrutam de qualquer coisa que se assemelhe a um grande renome, mas Vervoort cativou os torcedores do esporte belga, e os encantou com os gritos de alegria que lançava ao cruzar uma linha de chegada. Sua personalidade expansiva também ajudava, assim como a presença de seu leal escudeiro, um cachorro de serviço chamado Zenn.

Os torcedores não demoraram a descobrir sobre a história melancólica que existia por trás do sucesso dela nas competições, e sobre as dificuldades debilitantes que a aguardavam.

O que havia começado para Vervoort como uma infância feliz –pais amorosos, uma irmã mais nova, longos dias de praticar esportes na rua sem saída em que sua família vivia– se complicou quando ela chegou à adolescência, e surgiu a dor que viria a castigá-la pelo resto da vida.

A dor surgiu inicialmente na forma de um formigamento nos pés. Com o passar dos anos, o formigamento se tornou dor, subindo por suas pernas como se elas estivessem em chamas e solapando sua força. Vervoort passou a adolescência de muletas. Aos 20 anos, passou a usar uma cadeira de rodas.

Com seus sonhos infantis de se tornar professora destruídos por sua saúde precária e pela incerteza que acompanhavam sua doença, Vervoort começou a encontrar sentido para sua vida no esporte, depois dos 20 anos: basquete em cadeira de rodas, mergulho, triatlo. Mas a dor constante e o medo terminaram por lançá-la a uma profunda depressão.

Aos 29 anos, ela decidiu que sua doença era um fardo pesado demais. Começou a guardar pílulas em casa, imaginando que podia terminar as coisas desse jeito.

Como último recurso, um psiquiatra sugeriu que ela procurasse o médico Wim Distelmans, o principal proponente do suicídio com assistência medica na Bélgica.

O direito de pôr fim à própria vida com ajuda de um médico foi estabelecido na Bélgica em 2002, para pacientes que sofram de uma condição medica “sem esperança”, acompanhada por sofrimento “insuportável”, o que inclui doenças mentais ou cognitivas.

Nenhum país tem leis mais liberais do que a Bélgica sobre o suicídio assistido; em uma nação de 11 milhões de pessoas, 2.357 pacientes passaram por eutanásia em 2018.

Mas ainda que a escolha de se suicidar com assistência médica se tenha tornado mais comum na Bélgica, ainda há muitas pessoas, como os pais de Vervoort, que se sentem filosoficamente desconfortáveis com a ideia.

Mas ela fez a consulta com Distelmans e, depois de um exame detalhado, o médico concedeu autorização prévia para que Vervoort pusesse fim à própria vida. Mas acrescentou, no entanto, que ela não parecia muito disposta a levar a ideia a cabo.

Ela concordou.

“Eu só queria ter o papel em mãos para quando chegasse a hora de as coisas se tornarem pesadas demais para mim, para quando eu viesse a precisar de alguém tomando conta de mim dia e noite, para quando eu estivesse sofrendo um excesso de dor”, ela disse. “Não quero viver desse jeito."

Marieke Vervoort recebe a visita do médico Wim Distelmans em hospital
Marieke Vervoort recebe a visita do médico Wim Distelmans em hospital - Lynsey Addario - 28.fev.18/The New York Times

Segundo Vervoort, os documentos permitiram que ela retomasse parte do controle sobre sua vida. Ela deixou de ter medo da morte, porque a tinha em mãos o tempo todo.

“Por causa dos papéis”, ela disse, “recomecei a viver”.

Liberta das velhas ansiedades, Vervoort passou por uma fase longa de resultados excelentes em seu pequeno quadrante do esporte paraolímpico. Tornou-se conhecida com o “a besta de Diest” (sua cidade).

Além da medalha de ouro que ela conquistou na Paraolimpíada de Londres em 2012, ela ficou com a prata na prova dos 200 metros. Depois vieram mais três ouros no campeonato mundial de 2015, em Doha, Qatar, e mais duas medalhas na Paraolimpíada do Rio de Janeiro, em 2016 –prata nos 400 metros e bronze nos 100 metros.

As vitórias mudaram sua vida. Sob os holofotes, de repente, ela floresceu.

Um ano depois dos jogos de Londres Vervoort foi condecorada como Grande Oficial da Ordem da Coroa –uma das maiores honrarias da Bélgica—, pelo rei Philippe. Fez palestras motivacionais para audiências em empresas e obteve patrocinadores. Fazia compras na sede da Nike na Bélgica.
 
Os jogos do Rio atraíram nova atenção para ela, e estava claro que Vervoort apreciava a situação. Ela atendia a todos os pedidos de entrevista, todos os convites para falar no rádio e televisão. Tornou-se objeto de fascinação para os jornais sensacionalistas belgas e era acompanhada em suas atividades por um documentarista. Publicava detalhes minuciosos sobre sua vida em uma página de Facebook que tinha milhares de seguidores.

O espectro fascinante da mortalidade pendia por sobre tudo que ela fazia, criando uma tensão que não havia como ignorar. A celebridade de Vervoort vinha acompanhada de uma distorção sombria: a perspectiva de que ela morresse lhe conferia mais renome do que ela um dia pôde imaginar, mas com o tempo também poria fim a tudo.

Se a Paraolimpíada do Rio foi uma plataforma de lançamento para sua fama, o que veio depois –sua aposentadoria oficial das competições– sinalizaria uma virada para o sombrio e inevitável.

A dor se intensificou. Ela estava acostumada a viajar com uma caixa verde repleta de remédios, mas pela metade de 2017 estava viciada em morfina, consumindo diversas doses por dia. Seus dias, antes ocupados por treinos e compromissos públicos, se tornaram um borrão de internações hospitalares, tratamentos para a dor e sonecas induzidas por drogas.

“O período vem sendo difícil para ela”, disse Jos, pai de Vervoort, no final de 2017. “No ano passado ela tinha o esporte. Agora, quase todas as vezes que a vejo em casa, ela está dormindo no sofá."

As pessoas mais próximas a Vervoort viam seus olhos perdendo o brilho por efeito das drogas que ela usava para reduzir sua dor. Ouviam sua fala perder a clareza, se acostumaram a rememorá-la sobre conversas que ela esquecia inteiramente, esperavam pacientemente quando ela caía dormindo no meio de uma frase.

Após a aposentadoria da carreira de atleta, a campeã paraolímpica não suportou mais as dores
Após a aposentadoria da carreira de atleta, a campeã paraolímpica não suportou mais as dores - Lynsey Addario - 20.abr.18/The New York Times

Os pais dela choravam diante de seu sofrimento. Mas também viviam com medo do telefonema que anunciaria que algo aconteceu com ela, ou de serem informados de que ela por fim tinha feito planos concretos para passar pelo procedimento de suicídio. A posição deles sobre o suicídio com assistência médica havia se tornado mais complicada, à medida que sua filha se aproximava de recorrer a ele.
“Não é algo que apoiamos”, disse Jos Vervoort. “Mas compreendemos."

Eles estavam entre as pessoas que tinham a esperança de que Vervoort mudasse de ideia. Havia dias em que sua filha voltava a ser a pessoa animada do passado. Ela tentou desenvolver novos hobbies. Passava tempo com os amigos, contando piadas juvenis e enchendo de riso o espaço ao seu redor.

Mas as demandas da vida cotidiana foram lhe provocando um cansaço obscuro. Vervoort desmaiou na festa de aniversário de uma criança no final de 2017 e foi embora se sentindo impotente e embaraçada.
A campeã paralímpica estava definhando à vista de todos.

”Eu realmente tento curtir as coisas pequenas”, ela disse. “Mas as coisas pequenas estão ficando cada vez menores."

Nos últimos meses, estava claro que sua impaciência vinha crescendo. Os médicos dela estavam encontrando dificuldades para marcar uma data, e Vervoort estava convencida de que eles estavam buscando razões para enrolar.

“Quando me disserem o dia”, ela disse, “vou ser a pessoa mais feliz do planeta”.
 
Vervoort marcou sua festa de despedida para um sábado de outubro, em seu apartamento, sem muita antecedência. Caso não surgisse um adiamento de último minuto, ela morreria na terça-feira.

Três dias mais tarde, na terça, os pais a levaram para casa, dessa vez para morrer. Pararam na farmácia, para apanhar os remédios de eutanásia, que, segundo a lei belga, é a família que deve comprar.

De volta ao apartamento de Vervoort, um pequeno grupo de pessoas estava presente para a despedida, mas ela não parecia muito consciente de sua presença. Ela segurou no colo seu sobrinho Zappa, que tem menos de um mês de idade e é o primeiro filho da irmã de Vervoort. Ela havia marcado a eutanásia para depois do parto a fim de poder conhecê-lo.

Quando o médico, Distelmans, chegou, duas horas mais tarde, a maior parte das visitas tinha partido.
Distelmans e outro médico levaram Vervoort para seu quarto, onde fotos que a mostravam disputando provas foram coladas na porta, e a ajudaram a se acomodar na cama. Ela passou um último momento com os pais, a madrinha e dois de seus melhores amigos.

“Você tem certeza de que quer continuar?”, um dos médicos perguntou.

“Sim, quero continuar”.

A hora da morte foi registrada como 20h15.

Tradução de Paulo Migliacci

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