Obsessivo, Kobe Bryant desafiou seu corpo e pontuou até sem tendão

Astro do basquete inspirou pela capacidade de suportar condições mais adversas

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São Paulo

O título da NBA na temporada 2009/10 era considerado por Kobe Bryant “o mais doce” de sua vitoriosa carreira no basquete. É uma conquista que, além de significar uma vingança contra o Boston Celtics, arquirrival de seu Los Angeles Lakers, representa a tenacidade que sempre procurou mostrar o craque, morto no último domingo (26) em acidente de helicóptero.

Naquela campanha, o ala-armador sofreu uma fratura por avulsão no dedo indicador da mão direita, crucial para o arremesso de um destro. Os médicos indicaram um período de recuperação de seis semanas, mas o jogador se recusou a parar de atuar, sendo submetido a sessões que basicamente lembravam tortura após cada partida.

Para diminuir o inchaço no local lesionado, o preparador Gary Vitti pressionava a região com toda a força, como se apertasse um tubo de pasta de dente no final de sua vida útil. A ponta do dedo acabou sendo curada, mas o tratamento agressivo provocou artrite na segunda falange, um problema que Kobe carregou até o fim da vida.

Para jogar com o dedo quebrado, o camisa 24 desenvolveu uma nova técnica de arremesso, na qual usava o indicador apenas como apoio. Eram o polegar e o dedo do meio que realmente sustentavam a bola. E foi com essa mecânica, desenvolvida às pressas, que o atleta chegou ao seu título “mais doce”.

Bryant celebra o "doce" título de 2010 com as filhas Natalia e Gianna - Mike Blake - 17.jun.10/Reuters

A lesão não era a única que Bryant estava suportando no caminho para sua quinta conquista na NBA. O joelho direito, que lhe causou problemas em boa parte de sua carreira, estava novamente lesionado. Ao longo dos mata-matas, a articulação teve que ser drenada várias vezes para que flexionar a perna se tornasse possível.

É apenas mais um de incontáveis exemplos. Outro que impressiona ocorreu em 2013, quando, já perto de completar 35 anos, ele estava jogando todos os 48 minutos das partidas para levar um time muito problemático ao mata-mata.

Em duelo com o Golden State Warriors, o craque rompeu o tendão de Aquiles direito ao sofrer uma falta. A mesma lesão, gravíssima, fez outros saírem de maca direto ao hospital. Kobe bateu os dois lances livres e os converteu, pontos decisivos para a vitória dos Lakers e para a sua classificação.

Kobe, com o tendão de Aquiles rompido, prepara-se para acertar dois lances livres - Jeff Gross - 12.abr.13/AFP

“Eu só não jogo se literalmente não consigo andar”, repetiu várias vezes o ala-armador, em comportamento diferente do observado em alguns de seus contemporâneos, como Tim Duncan, e bem distinto do hoje observado entre a maior parte dos astros da NBA.

É atualmente comum na liga norte-americana de basquete a aplicação do conceito chamado de “load management”, algo como “administração da carga”. Em outras palavras, o jogador pode estar perfeitamente saudável, mas ganha um descanso e fica fora da partida.

Kawhi Leonard, 28, eleito melhor jogador das últimas finais, é o mais firme adepto da prática. Mesmo sem sofrer nenhuma lesão mais séria neste ano, o ala-armador já teve folga em 11 das 47 partidas do Los Angeles Clippers na temporada –cautela que Bryant certamente dispensaria.

“Ele era incrível. Eu nunca vi, até hoje, alguém jogar suportando o que ele suportou”, disse Luke Walton, 39, atual técnico do Sacramento Kings e companheiro do craque nos Lakers de 2003 a 2012.

“No começo da minha carreira, tinha jogos em que eu pensava: ‘Ele não vai poder atuar hoje, preciso elevar meu jogo’. Aí, chegava a notícia de que ele jogaria de qualquer maneira, a não ser que alguém o tirasse da quadra”, acrescentou o ex-jogador, em 2016, quando Kobe estava encerrando sua carreira.

Walton recordou com bom humor uma noite na qual o colega lesionou o ombro direito e passou a arremessar com a mão esquerda: “Machucou um pouco ele achar que fazer arremessos de três pontos com a mão esquerda era mais eficiente do que me passar a bola”.

Kobe teve lesão de ligamento no dedinho, em 2008, mas se recusou a passar por cirurgia - Lucy Nicholson - 28.fev.08/Reuters

Obsessivo nos treinamentos e na relação com o próprio corpo, Bryant não hesitava em buscar tratamentos alternativos que lhe deixassem na melhor forma possível. Ele foi algumas vezes à Alemanha, por exemplo, para procedimentos no joelho que não eram aprovados nos Estados Unidos.

A capacidade de superar limites é uma das grandes razões pelas quais o craque é tão reverenciado e ultrapassou as fronteiras de seu esporte. Assim que foi confirmada a notícia de sua morte, muitos, entre atletas e não atletas, famosos e anônimos, começaram a dividir histórias sobre como o comportamento do ala-armador os inspirou.

“Espírito de superação e trabalho duro. Ele sempre queria mais, sempre queria elevar seu nível. Ele era uma inspiração para o mundo dos esportes e para muitas crianças”, afirmou Rafael Nadal, 33, tenista número um do mundo.

Já Pete Zayas, 39, ex-treinador de basquete colegial que hoje ganha a vida produzindo vídeos de análises táticas do Los Angeles Lakers, recordou um período recente, em maio, no qual esteve perto da morte, internado com três diferentes problemas de saúde. A questão mais grave era respiratória, e, segundo ele, imitar Bryant o ajudou a se salvar.

“Eu me perguntar ‘o que Kobe faria agora’ nos momentos mais duros foi essencial para minha recuperação”, disse o analista, que apelou à “Mamba Mentality” –como o craque, apelidado de “Black Mamba” ou “Mamba Negra”, chamava o próprio comportamento.

“Para mim, a ‘Mamba Mentality’ era sobre fazer qualquer coisa com obstinado foco e determinação”, afirmou Zayas, que estabeleceu uma meta difícil nos exercícios respiratórios e acabou saindo saudável do hospital.

Para ele, “mostrar a uma geração de fãs o valor da determinação será sempre o legado de Kobe Bryant”. É justamente essa determinação, aposta o ex-treinador, que fará os próximos dias suportáveis.

“Às vezes, você tem que se levantar e acertar dois lances livres mesmo quando se sente quebrado.”

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