Descrição de chapéu
The New York Times Futebol Internacional

Personagem Zlatan será mais lembrado que o jogador Ibrahimovic

De volta ao Milan, atacante de 38 anos criou e amplificou sua própria caricatura

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rory Smith
The New York Times

A esta altura, Zlatan Ibrahimovic deve ter a imagem armazenada em seu celular. Você quase certamente já deve tê-la visto: Ibrahimovic de perfil, vestido de anjo (e com um olhar de concentração beatífica no rosto), envolvido em um braço de ferro contra um demônio musculoso.

Ele usou a imagem pela primeira vez ao assinar um contato novo com o Manchester United em 2017, um ano depois de uma chegada à Inglaterra que supostamente representava a última parada de sua carreira.

A iconografia não é muito clara: Ibrahimovic estava assumindo um compromisso com o United –um time conhecido como “os diabos vermelhos” para todo mundo exceto sua torcida-, mas na imagem ele parecia estar brigando com o diabo. Afinal de contas, anjos e diabos costumavam estar em lados opostos.

Ele voltou a usá-la algumas semanas atrás, perto do final de dezembro, ao confirmar seu retorno há muito antecipado da Major League Soccer (MLS) americana ao futebol europeu, desta vez ao Milan, mais um time cujo uniforme é vermelho e preto e que também é conhecido pelo apelido de “diabos”, embora por menos gente. “Mesmo Zlatan, diabo diferente”, dizia a legenda.

É difícil descobrir com precisão quando essa brincadeira começou. Ibrahimovic certamente sempre foi um personagem falastrão e nunca teve medo de deixar o mundo saber o que sente. Jamais, nem mesmo na sua adolescência arruaceira no Malmo, o clube de sua cidade natal na Suécia, houve dúvida sobre o quanto ele é especial. Ibrahimovic é dado à gabolice, à hipérbole e ao exagero por natureza.

A personalidade de Ibrahimovic não é a mesma coisa que o personagem Zlatan, no entanto. Isso começou –imagino– com a publicação de suas memórias, “I Am Zlatan”, em 2011.

Em retrospecto, o livro marcou um momento de imensa mudança. Foi quando Ibrahimovic abandonou qualquer tentativa de resistir à sua reputação de egoísmo e decidiu explorá-la, e não só ser Zlatan, mas fazer o papel de Zlatan. Foi o momento em que ele começou a falar de leões.

Como a imagem do anjo Zlatan, o leão é um motivo recorrente em muitos de seus pronunciamentos públicos. A biografia dele no Instagram, por exemplo, diz que “leões não se comparam a humanos”. É uma citação que ele conjurou em uma entrevista de TV quando ainda jogava pelo United. E claramente a frase o agrada muito.

A decisão deu resultado, é claro. Ibrahimovic foi encarado por muito tempo como alguém que se saía bem em torneios fáceis, astro de times capazes de esmagar seus adversários nacionais, mas incapazes de brilhar nos palcos maiores. Ele vai se aposentar sem nunca ter ganhado a Champions League. Sem nunca ter marcado um gol em Copa do Mundo.

Nos últimos anos, porém, a percepção sobre ele mudou –e com razão. A Inglaterra sempre foi o último bastião do cinismo com relação a Ibrahimovic. Marcar quatro gols em um amistoso entre a Suécia e a Inglaterra em 2012 ajudou a derrubar boa parte dessa resistência, e seu desempenho no United, mesmo nos anos finais de sua carreira, acabou com qualquer resquício de dúvida.

Mas a Inglaterra na verdade não se apaixonou por Ibrahimovic, o atacante, e sim por “Zlatan”, o personagem caricatural, a criação de marketing, o provedor de conteúdo.

Zlatan Ibrahimovic abraça companheiros e aponta para o alto
Zlatan Ibrahimovic comemora seu primeiro gol na volta ao Milan, neste sábado (11) - Davide Spada/LaPresse/DiaEsportivo/Agência O Globo

A Inglaterra ama os excêntricos; mas cada vez mais, e isso prejudica o país, ela ama as bazófias: um país inteiro sob o controle de qualquer pessoa que diga coisas ultrajantes o suficiente para causar risadas. Se quiser mais referências, vide a eleição geral britânica de 2019.

Foi essa segunda onda de fama viral, além de seu currículo dourado, que o tornou um sucesso tão grande na MLS. David Villa é par de Ibrahimovic de muitas maneiras, mas quando chegou aos Estados Unidos não mereceu uma série de anúncios de página inteira em jornais para declarar a intenção do jogador de conquistar a cidade.

Seria interessante determinar o quanto disso acontece por acidente e o quanto como parte de um plano ou estratégia de relações públicas –e pode ter certeza de que “Zlatan” existe em parte como campanha de relações públicas.

Será que o personagem é orgânico, representa uma versão amplificada da personalidade de Ibrahimovic, ou será que ele é pura confecção?

A sensação sempre foi a de que Ibrahimovic está brincando e diz seus diálogos com um sorriso e uma piscadela, mas é impossível ter certeza.

Com o tempo, se tornou mais fácil acreditar que ele não está brincando. Já faz quase uma década que seu livro foi publicado; nove anos de declarações absurdas, diálogos engraçadinhos e comparações com predadores. A brincadeira está começando a cansar.

Em algum momento, mesmo as pessoas que continuam rindo vão perceber que a piada perdeu a graça.

Talvez isso já não importe, quando acontecer. Ibrahimovic terá se aposentado. Terá extraído todo o possível de seu talento para jogar um esporte e de seu talento para interpretar um papel. Mas talvez importe.

Talvez, quando tivermos de recordá-lo, terminemos por recordar o personagem e não o jogador. Talvez nos lembremos da piada, mas não de por que ela era engraçada.

Tradução de Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.