Descrição de chapéu Futebol Internacional

Uruguaio fez gol histórico, irritou ditadura e abandonou futebol

Julio Filippini dedicou feito a irmão preso pelo regime encerrado há 35 anos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

A quem se dedica o gol é uma pergunta comum feita por repórteres aos jogadores após uma partida de futebol, mas mudou a vida do jovem atacante uruguaio Julio Filippini, 19, em sua estreia pelo Defensor.

“Mando uma saudação ao meu irmão e para os companheiros da penal Liberdade”, respondeu, antes de virar as costas e ir embora, sem dar importância para o que havia dito.

Assim que deixou o vestiário, encontrou sua noiva, desesperada. “Que disparate foi esse que você fez?”, questionou.

Julio Filippini (à esq.), do Defensor, chuta contra o gol do Nacional, em partida do Campeonato Uruguaio de 1976, no Estádio Centenário
Julio Filippini (à esq.), do Defensor, chuta contra o gol do Nacional, em partida do Campeonato Uruguaio de 1976, no Estádio Centenário - Desportivo Uruguay/Divulgação

Seu pai o esperava na saída do estádio Centenário, motor do carro já ligado, e não o levou para casa. Fez o filho se esconder por quase uma semana. No dia seguinte ao jogo, policiais apareceram no estádio Luis Franzini, sede do clube, à procura de Filippini. Como não o encontraram, levaram outros jogadores à delegacia para prestarem esclarecimentos.

Em sua estreia como profissional, o atacante havia anotado o gol de empate de sua equipe contra o Nacional, pelo Campeonato Uruguaio de 1976. Foi um momento histórico porque o Defensor, com a vantagem final de um ponto, foi campeão daquele ano, a primeira vez que um time fora da dupla Nacional e Peñarol conquistava o título na era do profissionalismo, iniciada em 1932.

O cenário da vitória era o Uruguai da ditadura comandada pelo presidente Juan María Bordaberry, com prisões arbitrárias, torturas, prisões políticas e desaparecidos. Filippini  dedicou o gol ao irmão Eduardo, encarcerado na penitenciária ironicamente chamada de Liberdade.

Aquela primeira partida deveria ter sido seu começo, mas foi o fim. Julio Filippini nunca mais jogou futebol como profissional.

“Eu sabia que meu irmão havia escutado pelo rádio o jogo anterior e talvez estivesse ouvindo aquele. Eu queria mandar uma saudação a ele e aos companheiros de cela que conhecia. Não tive intenção de provocar, mas percebi que talvez poderia ser interpretado como algo mais forte”, afirma à Folha o ex-atacante, hoje contador aposentado e ainda funcionário da Prefeitura de Montevidéu.

O repórter que o entrevistou e perguntou a quem dedicava o gol também foi chamado pelos militares. Quando Victor Hugo Morales, que anos depois se mudaria para a Argentina e se tornaria um dos mais importantes narradores do país, entrou na sala, um major do Exército o esperava com gravador em cima da mesa. Apertou uma tecla, e a entrevista de Filippini ecoou na sala.

“O oficial olhou para mim e disse apenas: vou lhe dar um recado que será fácil de entender. Você recebeu um cartão amarelo”, disse Morales. Em seguida, foi dispensado.

A ditadura do Uruguai, iniciada por golpe de estado em 1973, durou até 28 de fevereiro de 1985, há exatos 35 anos. Segundo levantamento da Comissão para a Paz, criada em 2000 para investigar crimes políticos, 174 pessoas desapareceram no Uruguai no período e cerca de 100 prisioneiros políticos foram mortos.

Filippini se tornou um dos nomes mais visados por causa do gol dedicado ao irmão, mas a ditadura tinha outras preocupações naquele time do Defensor que faria história.

O meia Pedro Graffigna, 14 partidas pela seleção, era nome marcado pelo sistema de repressão. Apenas sua condição de atleta famoso do futebol nacional o fez escapar de problemas maiores. Ao ser parado pela polícia na rua, foi encontrado com ele um carnê de pagamento à CNT, central sindical que estava ilegal na época.

Era de conhecimento das autoridades que, quando jogou no Chile, Graffigna havia tomado parte em movimentos comunistas.

O lateral Javier Beethoven foi preso sob mira de metralhadoras quando brincava de futebol na rua com o filho. Passou a noite na sede dos fusileiros navais e acabou liberado no dia seguinte. Ele até hoje desconhece o motivo da detenção. O governo sabia que boa parte dos jogadores era militante ou simpatizante da Frente Ampla, a união de partidos de esquerda.

E ainda havia o “guru” ou “deus”, os dois apelidos de José Ricardo de León, o treinador comunista que levou métodos de basquete ao futebol e fez do Defensor campeão nacional. Um dos precursores da pressão para recuperar a posse de bola que se tornou moda nos dias atuais com o alemão Jürgen Klopp, De León foi acusado durante anos de ser partidário do "antifutebol".

Muito tempo depois, a história foi revista e ele passou a ser considerado criador de um estilo que lembrava o futebol total da Holanda na Copa de 1974. “Eu jogo para ganhar. A única coisa importante é ganhar”, afirmava.

Era tão fundamental que não aceitava comprometer a chance de vencer por causa de preferências políticas. Por acreditar que o ataque precisava de um goleador experiente, indicou Luis Cubilla, 36, simpático ao Partido Colorado, sigla alinhada aos miliares, e amigo do presidente Bordaberry.

Sua preferência pela esquerda, a ligação com partidos socialistas e a imagem daquele Defensor impediram que o técnico chegasse à seleção uruguaia.

“Os militares não interferiram no campeonato para impedir que o Defensor fosse campeão. A questão política apareceu apenas depois. E a vingança foi não permitir que o professor fosse para a seleção”, explica Filippini.

O então garoto de 19 anos não jogou mais, mas fez parte da imagem icônica daquele título e uma das mais memoráveis da história do futebol sul-americano. Quando a equipe derrotou o Rentistas na última rodada e selou a conquista, os jogadores decidiram dar a volta olímpica no sentido horário, ao contrário do usual.

“Foi intencional. Era o que queríamos fazer. A gente vivia momento muito especial, e foi uma forma de mostrar que havíamos conseguido algo considerado impossível”, completa Filippini.

Ao ser campeão em 2004, 2007 e 2014, o Danubio, outro clube de Montevidéu, fez da “vuelta olímpica al revés” (em espanhol) uma tradição.

O tom de voz de Julio, hoje com 63 anos, não demonstra qualquer mágoa por aquele empate com o Nacional ter sido sua única partida como jogador profissional. Se existiu algum arrependimento, ficou para trás.

“Eu era das categorias de base. Fui escalado naquele jogo por causa de lesões. Depois retornei ao sub-20 e fomos vice-campeões. Quando o campeonato acabou, me dispensaram. Não posso confirmar se isso aconteceu por causa de política, mas anos depois alguns dirigentes do clube me disseram que a saudação ao meu irmão aborreceu muita gente”, explica.

"Agora se comenta todos os anos sobre quando o time de um clube fundado por operários deu a volta ao revés na época da ditadura. É muito bonito isso”, conclui.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.