Antes de parar o esporte, coronavírus já havia mudado a etiqueta dele

Com exceções, atletas passaram a cada vez mais evitar os tradicionais 'high-fives'

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Andrew Keh
The New York Times

Jürgen Klopp, o treinador do Liverpool, saiu do túnel no estádio Anfield, antes da partida de seu time na Champions League, na noite de quarta-feira (12), e avistou em seu caminho as mãos estendidas dos entusiastas.

É uma cena comum: torcedores em eventos esportivos à procura de algum contato com seus heróis, que costumam retribuir sem prestar muita atenção. Mas Klopp claramente tinha outra coisa em mente.

“Recolham as mãos!”, ele gritou para os torcedores –acrescentando um ou dois termos mais ofensivos–, antes de pisar no gramado.

A difusão do coronavírus prejudicou jogos, ligas e torneios em todo o mundo, na última semana, forçando cancelamentos e adiamentos em muitas modalidades.

Nas partidas que foram adiante –em estádios profissionais, arenas universitárias e parques locais—, houve um aumento perceptível no número de pequenos momentos de cautela e uma sutil reconsideração do cumprimento com a mão espalmada, o “high-five”, que é um costume no mundo do esporte.

Na semana passada, o humilde tapinha amistoso na mão de um colega foi alvo de atenção e terminou estigmatizado e encarado com ansiedade, refletindo muito da confusão, e das contradições, na resposta inicial dos países ao surto do coronavírus.

Pouco importa que os jogos que envolviam esses mesmos atletas inevitavelmente incluíssem momentos de contato físico próximo.

Alguns atletas e treinadores tentaram abandonar de vez o “high-five”, substituindo-o por toques de cotovelo, tapinhas nos antebraços, encostões de chuteiras ou qualquer outro método que ajudasse a evitar os “high-fives” e apertos de mão, que facilitam a transmissão de germes e vêm sendo desencorajados pelos especialistas em saúde pública.

“Acho que existe uma compreensão de que vamos fazer todo o possível para proteger uns aos outros e para ajudar em nossa própria proteção”, disse Crystal Dunn, zagueira da seleção feminina de futebol dos Estados Unidos.

Jogando como capitã da equipe no domingo (8), Dunn ocupava a primeira posição no alinhamento para cumprimentos pré-jogo quando as jogadoras da seleção espanhola, depois de trocarem “high-fives” com os juízes, se aproximaram com as mãos estendidas.

Dunn encarou suas colegas de time e deu de ombros, sem saber bem o que fazer. Enquanto as jogadoras espanholas desfilavam diante dela, Dunn cumprimentou cada uma com um toque leve de punho fechado.

As jogadoras da seleção americana vinham tentando cumprimentar as adversárias com toques de cotovelo durante toda a semana, com grau variável de sucesso, como parte dos esforços mais amplos de combate ao vírus.

Jogo entre Estados Unidos e Japão na última semana teve cumprimentos com o cotovelo
Jogo entre Estados Unidos e Japão na última semana teve cumprimentos com o cotovelo - Ronald Martinez - 12.mar.20/AFP

Quando entravam em campo para as cerimônias de abertura, elas traziam os braços sobre os ombros das crianças que acompanham a equipe, em lugar de caminharem de mãos dadas com elas, como é costume.

Durante a partida do domingo, um alerta divulgado pelos alto-falantes do estádio lotado informava que as jogadoras, que costumam se aproximar do público, “podem não interagir com os torcedores tanto quanto costumam, no final do jogo”.

Tudo isso espelhava os padrões que começaram a surgir no esporte na semana passada: os cumprimentos pré-jogo nas partidas da Premier League da Inglaterra foram substituídos por acenos enquanto os jogadores desfilavam diante da equipe adversária perfilada.

Alguns torneios de esportes universitários, nos Estados Unidos proibiram a troca de “high-fives” antes e depois dos jogos (em seguida as partidas foram todas canceladas), e o Minnesota Twins foi o primeiro time de beisebol profissional a proibir trocas de apertos de mãos com os torcedores e a instruir seus jogadores a não assinar autógrafos, para que as canetas dos torcedores não se tornassem potenciais veículos para o vírus.

Talvez valha a pena fazer uma pausa, a esta altura, a fim de apontar para o fato de que passar um pequeno objeto de pessoa a pessoa, com as mãos nuas, continua a ser o fundamento de muitos esportes.

As preocupações também chegaram aos atletas amadores, em seus jogos em ginásios e parques locais. Andrew Dearling, gerente de marketing digital em Brooklyn, Nova York, estava bufando durante uma sessão de treino com seu clube de corrida, recentemente, quando outro integrante se aproximou dele com a mão estendida. Dearling se afastou.

“Eu só sorri e disse ‘ei, coronavírus’”, ele explicou. “As pessoas funcionam em piloto automático. Querem trocar cumprimentos, um ‘high-five’, um soquinho amistoso. Mas não vale o risco."

Para os atletas, os “high-fives” podem parecer automáticos e onipresentes em situações de competição. Talvez sejam o único gesto que une o diversificado mundo do esporte em todo o planeta: uma maneira de articular tanto alegria quanto comiseração, uma forma de comunicar espírito esportivo ou um pedido de desculpas, ou simplesmente uma maneira de criar um clima amistoso.

Há até mesmo indicações de que “high-fives” podem melhorar o desempenho dos atletas. Em 2010, um estudo intitulado “Comunicação Táctil, Cooperação e Desempenho: Um Estudo Etiológico da NBA”, circulou amplamente e mostrava um elo positivo entre as interações físicas dos colegas de equipe, no basquete, e sua eficácia em quadra.

A teoria dispunha que um clima positivo pode ser contagioso. Infelizmente, o mesmo pode ser dito sobre muitas outras coisas.

É por isso que Mike McGuirk, direto executivo da Bay Area Disc Association, uma liga amadora de frisbee da Califórnia, passou a semana passada toda usando o cotovelo para responder a esforços de trocar “high-fives”.

“Existem outras formas de oferecer afirmação”, disse McGuirk, que também pediu aos jogadores da liga que desinfetassem seus frisbees com lenços embebidos em álcool.

As perguntas sobre essa abordagem inevitavelmente retornam a uma questão mais difícil: vale a pena evitar contato com a mão de um adversário antes do jogo se logo em seguida o atleta terá de se engalfinhar com ele em busca de um rebote?

Como o “distanciamento social” funciona quando você está em um emaranhado de corpos suarentos, disputando a bola? E trocar cumprimentos usando o punho cerrado, em lugar da mão espalmada, é aceitável?

O fato de que vestiários esportivos sejam terreno tão fértil para a transmissão de doenças quanto as salas de aula do pré-primário tampouco ajuda. É uma lição sobre a qual os jogadores de beisebol brincam há anos e que o Utah Jazz, da NBA, aprendeu da maneira mais difícil na semana passada.

Megan Rapinoe e outras jogadoras da seleção americana não se preocuparam em evitar contato das mãos
Megan Rapinoe e outras jogadoras da seleção americana não se preocuparam em evitar contato das mãos - Matthew Emmons - 11.mar.20/USA TODAY Sports

“Se uma pessoa do time tem uma doença, todo mundo termina por contrai-la”, disse a estrela do futebol Megan Rapinoe. “Assim, a esperança é que ninguém pegue” o coronavírus, ela disse.

Além disso, alguns atletas simplesmente não aceitam a lógica de não retribuir a um cumprimento de um colega.

Antes da partida da seleção feminina de futebol, no domingo, Rapinoe, notória por seu comportamento não conformista, foi a única jogadora da seleção americana a trocar os “high-fives” tradicionais com as jogadoras espanholas.

“Vamos suar umas sobre as outras o jogo todo”, afirmou Rapinoe, mais tarde. “Isso meio que derrota o propósito de evitar um aperto de mão."

Tradução de Paulo Migliacci

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