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Cartolas pausam futebol, mas prazo para retomá-lo pode gerar conflitos

Cronograma intransigente para ligas nacionais tende a resultar em novos incômodos

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Rory Smith
Manchester | The New York Times

O problema era o poder, na verdade: quem o detinha, quem o cobiçava, quem o manteria.

Com isso removido, e com as disputas ferozes entre aqueles que ameaçavam paralisar o futebol suplantadas por uma crise que eles não têm como vencer por meio de escambo ou intimidação, todas aquelas exigências incontornáveis se tornaram irrelevantes. Os impotentes não estão em condição de brigar sobre seus problemas.

Em apenas cinco dias –embora a sensação tenha sido de que muito, muito mais tempo transcorreu–, o futebol descobriu um espírito de “unidade”. Gianni Infantino, o presidente da Fifa, a organização que comanda o futebol mundial, percebeu o fato. O mesmo vale para Aleksander Ceferin, o presidente da Uefa, a organização que comanda o futebol europeu.

De alguma forma, apenas uma semana se passou desde que os dois se encontraram em Amsterdã no congresso anual da Uefa, com o primeiro tentando fazer as pazes e o segundo respondendo com uma esnobada: poses e vaidades que agora parecem pertencer a outro lugar, outro mundo.

Naquele momento e lugar, Fifa e Uefa estavam em confronto, por controle, por dinheiro, por tudo. E não eram as únicas: os clubes tinham sua agenda, as ligas, também. Ninguém parecia especialmente preocupado com aquilo que os jogadores desejam, e ninguém jamais se incomoda em perguntar aos torcedores o que acham. Os organizadores queriam mais torneios, ou ampliar seus torneios; mais partidas, mais prêmios, mais tudo, mais qualquer coisa.

De repente, quando Juventus, Inter de Milão, Real Madrid e Arsenal entraram em quarentena por conta do coronavírus, e quando ligas esportivas de todo o planeta decidiram paralisar suas atividades, ficou evidente que a questão já não era a necessidade de ter mais, e sim a realidade de que, por algum tempo, todos teriam nada.

Não fazia sentido, depois disso, brigar pelo poder, não quando se tornou claro, mesmo para figuras como as que comandam o futebol, que algo mais estava no controle.

Foi essa sensação de impotência que criou o novo sentimento de unidade no futebol. No final de semana, representantes de todas as partes interessadas no esporte examinaram contratos, fizeram contas e realizaram reuniões.

E –o que parece igualmente importante– alguns deles se dispuseram a ouvir. Quando a Uefa convocou a primeira de suas teleconferências da semana –primeiro com as ligas e clubes da Europa, e em seguida com as federações nacionais dos países do continente–, a estrutura básica de um plano foi desenvolvida.

A Eurocopa masculina que seria disputada na metade do ano teria de ser adiada, como já era ofuscantemente óbvio havia algum tempo, e a decisão foi a de que ela seria disputada nos mesmos locais, e mais ou menos com o mesmo calendário, no ano que vem.

Diversos torneios –os campeonatos europeus sub-21, a final da Liga das Nações e o campeonato feminino europeu– terão de mudar de data para acomodar esse ajuste.

Isso por sua vez cria espaço e folga no calendário para que a Uefa não só conclua as edições atuais de seus torneios –Champions League e Liga Europa–, como para que as ligas nacionais da Europa encontrem maneiras de concluir suas atuais temporadas.

Idealmente, disse a Uefa, isso deveria acontecer antes de 30 de junho, a data em que a “atual temporada esportiva” se encerra e, mais importante, a data de expiração de diversos contratos. Se isso não acontecer, a Uefa terá de buscar maneiras de alterar os processos qualificativos para a Champions League e Liga Europa do ano que vem, a fim de criar ainda mais espaço no calendário.

Times de Basel e Eintracht Frankfurt se posicionam para um dos jogos disputados sem público, pela Liga Europa - Ulrich Hefnagel - 13.mar.20/Xinhua

Existe a aceitação, é claro, de que talvez realizar qualquer um desses planos se torne impossível, e de que existe a possibilidade de que a atual temporada precise ser anulada integralmente, ou concluída prematuramente. Não existe nenhum vislumbre de retorno à disputa pelo poder.

De sua parte, a Fifa adiou a Copa do Mundo de Clubes que acaba de reformular, marcada para a China no ano que vem; a organização ainda não definiu a nova data para sua disputa.

Poucas horas depois do anúncio da Uefa, a Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) confirmou que também transferiria seu principal torneio, a Copa América, da metade deste ano para o ano que vem. A Copa Africana de Nações, marcada originalmente para Camarões em janeiro do ano que vem, foi adiada por prazo indefinido.

Agora, a Uefa, os clubes e as ligas europeus devem começar a determinar como concluir o que falta da atual temporada de alguma forma satisfatória, o que fazer caso isso não seja possível e como ajudar as ligas e clubes cuja existência está sob ameaça por conta de uma paralisação que pode levar meses.

“A situação nos uniu. Percebemos que nosso ecossistema é frágil, que temos um só ecossistema e precisamos agir responsavelmente, precisamos ajudar uns aos outros. Não há mais espaço para ideias egoístas. Não há mais espaço para egoísmo. O futebol mundial precisa recomeçar do zero”, disse Ceferin.

“Vi extrema solidariedade. Vi um espírito amistoso. Vi amizade. Por isso estou otimista. Mas precisamos esperar para ver. Você sabe que, quando a crise chega, às vezes agimos um pouco diferentemente do que fazemos depois que ela passa”, afirmou.

“Senti que hoje, nesta reunião, tivemos uma reunião de solidariedade. Foi uma grande sensação perceber a grande solidariedade que o futebol europeu demonstrou hoje. Eu diria que essa é a maior crise que o futebol já enfrentou em sua história. Mas também serve como uma possibilidade de recomeçar algumas coisas”, acrescentou o presidente da Uefa.

O presidente da Uefa, Aleksander Ceferin, tem mostrado otimismo - Yves Herman - 3.mar.20/Reuters

Ao anunciar sua reunião de emergência, na semana passada, a Uefa deixou claro aos diversos convidados que tudo estaria na mesa, que não haveria restrições, tabus ou qualquer coisa inegociável. O otimismo de Ceferin é tamanho que ele claramente –e com alguma justificativa– acredita que essa abordagem tenha funcionado.

Mas tantas das coisas que estão em consideração no momento eram consideradas completamente impensáveis na semana passada: que uma grande confederação (ou três) mudasse as datas de seu principal evento; que partidas da Champions League fossem jogadas em finais de semana, tradicionalmente um período sacrossanto para os campeonatos nacionais; que a Fifa concordasse em adiar uma competição que Infantino passou anos promovendo e vendendo em todo o mundo.

E, infelizmente, nada disso foi testado na prática. O teste ainda está por vir, quando os clubes e ligas tentarem encontrar uma forma de concluir a temporada atual e jogar a seguinte, em um prazo de 15 meses. E isso sem saber até que ponto o surto do coronavírus, completamente imprevisível, vai se estender, quando os esportes poderão ser retomados ou, crucialmente, se o público, sitiado e alquebrado, ainda terá tolerância para com essas competições.

O presidente da Fifa, Gianni Infantino, durante congresso da Uefa - Yves Herman - 3.mar.20/Reuters

Os limites rígidos podem ter desaparecido, mas continua a haver limites. Existe “flexibilidade” agora, como disse Ceferin, mas apenas até certo ponto. A Uefa não precisava ter definido já a nova data da Eurocopa. Poderia ter anunciado simplesmente que ela não seria jogada neste ano.

Em lugar disso, a organização para todos os efeitos estabeleceu um prazo. Agora, por exemplo, não é possível usar o momento como oportunidade para preparar o futebol mundial para outro grande choque, esse autoinduzido, quando o Qatar sediar a primeira Copa do Mundo a ser jogada em dezembro, em 2022.

Jogar a Eurocopa no começo do ano que vem poderia criar uma oportunidade de alinhar a temporada europeia com dois anos de antecedência: jogar temporadas completas em 2021 e 2022, cada qual encerrada em novembro, como preparação para a Copa.

Essa possibilidade agora desapareceu. Pode bem ser que existam motivos convincentes para isso. Nenhuma das soluções adotadas é fácil. Mas elas tampouco são urgentes. Se há algo que não falta aos dirigentes do futebol, no momento, é tempo.

Mas temos pressão sobre os clubes, sobre as ligas, sobre a Uefa mesmo, por uma solução que permita que a Eurocopa, disputada na metade do ano que vem, coroe temporadas nacionais e continental completas. É mais fácil falar nisso do que fazê-lo.

Mesmo em seu momento de magnanimidade, mesmo quando não está no controle dos eventos, a Uefa conseguiu impor um prazo. Talvez, depois de tantos anos o exercendo, não seja fácil abrir mão do poder.

Tradução de Paulo Migliacci

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