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The New York Times Coronavírus

Clubes venderam ideia de comunidade e agora precisam contribuir

É o mínimo que o rico futebol pode fazer no combate ao coronavírus

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Rory Smith
Manchester | The New York Times

O Hospital Geral de Watford fica a no máximo dois minutos de caminhada do Vicarage Road, o estádio simpático e ligeiramente decadente do time que representa a cidade na Premier League. Quem sai da arquibancada Graham Taylor e cruza o estacionamento, logo chega ao hospital, depois de passar por uma fileira de casas geminadas.

O Vicarage Road, como quase todos os estádios do planeta –exceto, estranhamente, os da Belarus– está fechado e ocioso, e o silêncio o torna apenas mais um dos incontáveis monumentos à paralisação geral da vida cotidiana na era do coronavírus. Já o hospital, como quase todos os hospitais do planeta, está essencialmente em ritmo de guerra. Já haviam acontecido quatro mortes atribuídas ao coronavírus lá, até a quinta-feira (26), enquanto o Reino Unido se prepara para uma alta no número de vítimas e para o pico do contágio.

O pequeno estádio do Watford é vizinho de um hospital - Andrew Couldridge - 14.mar.20/Reuters

Fazia perfeito sentido, portanto, que o clube de futebol da cidade oferecesse o uso de seu estádio ao hospital, em um momento em que ele precisa –em que todas as instalações médicas precisam – de mais espaço. O Vicarage Road poderia oferecer espaços para reuniões, sediar cursos de treinamento, servir como depósito, criar espaço para creches. O que quer que o hospital precisasse. “Tudo o que for preciso”, disse Scott Duxbury, o presidente-executivo da equipe.

Houve inúmeros gestos como o do Watford nas duas últimas semanas, vislumbres de carinho, empatia e cuidado para com a sociedade mais ampla, vindos de um esporte que frequentemente é acusado de existir em uma bolha de complacência autocentrada.

Os gestos vieram de clubes: o Manchester United e o Manchester City se uniram para fazer doações a um banco de alimentos da cidade, o Brighton ofereceu ingressos gratuitos aos profissionais de saúde quando a crise passar e o futebol for retomado. Quase todos os clubes usaram sua presença na mídia social a fim de difundir a mensagem de que os torcedores deviam ficar em casa.

Também houve contribuições de jogadores e de treinadores: Pep Guardiola, Lionel Messi, Cristiano Ronaldo e Robert Lewandowski doaram vastas quantias para hospitais ou para pesquisas que ajudarão a combater o vírus.

Há muitos outros exemplos –numerosos demais para citar, na verdade, por medo de deixar alguém de fora. Os jogadores do Borussia Mönchengladbach (ALE) e os do Leeds United (ING) propuseram cortes voluntários de salário para garantir que outros empregados dos clubes continuassem a receber. O West Bromwich Albion (ING) está entre os diversos clubes que prometeram continuar a pagar os trabalhadores ocasionais, aqueles que só trabalham no estádio em dias de jogos, mesmo que não haja jogos nos quais eles possam trabalhar.

A resposta a esses gestos, obviamente, é a de que isso é o mínimo que o futebol pode fazer. Afinal, trata-se de um esporte que gera muito dinheiro, um esporte tão rico –pelo menos em seus níveis mais elevados– que pode desperdiçar centenas de milhões de dólares em comissões para agentes, contabilizar como maus investimentos os salários milionários de contratações que não deram certo, e recompensar a mediocridade (relativa) com riqueza suficiente para durar mais que uma vida.

E no entanto o esporte não é o único setor sobre o qual se pode fazer essa afirmação. O ex-jogador Phil Neville, hoje treinador da seleção feminina da Inglaterra, disse um dia que, nos momentos de crise, só o futebol é pressionado a ajudar. O mesmo não é exigido do setor financeiro, por exemplo, cuja remuneração pode ser igualmente generosa.

No Reino Unido, ao menos, existe uma tendência a contrastar os salários de, por exemplo, enfermeiros e soldados aos dos jogadores de futebol, em lugar de contrastá-los, digamos, aos de atores ou astros do rock e da televisão. Todos eles são parte essencialmente do ramo do entretenimento, mas algumas dessas pessoas parecem ser consideradas mais dignas de suas riquezas do que outras. Não deveria ser surpresa que os futebolistas, em sua maioria vindos da classe trabalhadora, sejam os mais criticados.

Essa perspectiva é válida, mas existe uma diferença crucial. O futebol –talvez mais do que qualquer outro esporte– se vende com base em sua conexão com a comunidade. Os clubes fazem tudo o que podem para enfatizar que são mais do que apenas empresas, que seus motivos se estendem a mais do que o simples capitalismo, que eles representam a um só tempo empresas saudáveis e lucrativas de criação de conteúdo e instituições sociais augustas.

Todos os clubes tentam comercializar a ideia de que sua localização é parte de sua identidade, e que, ao apoiá-los, o torcedor está se integrando a essa identidade. E o fazem não só porque isso foi verdade, um dia, mas porque é isso que faz com a torcida continue retornando.

É a linha que separa um cliente de um torcedor, e um torcedor é um gerador muito mais consistente de fluxo de caixa. Bancos têm clientes. Estúdios de produção têm clientes. Clubes são diferentes. Clubes são mais que isso. Clubes têm identidades e significado, e por isso os clubes têm torcedores.

Torcedores de futebol não são exatamente clientes - Phil Noble - 8.mar.20/Reuters

Ainda que, em circunstâncias normais, os clubes coloquem esse elo em risco com frequência muito maior do que deveriam –preços absurdos para os ingressos, uma completa falta de prestação de contas e em muitos casos um desrespeito espantoso quanto às opiniões dos torcedores–, é em momentos como o atual que esperamos ver os benefícios da adesão a essa ilusão.

Vivemos um momento em que não esperamos que os clubes ajam como empresas, em que esperamos que façam mais, que vão além, que se provem dignos de sua autodescrição como instituições sociais, como parte do tecido de uma comunidade. É quando esperamos que eles demonstrem que podem cuidar de nós –no sentido mais amplo do termo–, da mesma forma que cuidamos deles. Vivemos momentos em que os clubes podem provar que não falam só da boca para fora. Vamos esperar que eles continuem a se provar dignos de sua própria retórica.

Tradução de Paulo Migliacci

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