Descrição de chapéu
Tóquio 2020

Manter rituais olímpicos no momento é atropelar humanidade dos Jogos

Se forem realizados a portas fechadas, ficará evidente afirmação do produto comercial

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Katia Rubio
São Paulo

Os Jogos Olímpicos de Tóquio-2020 prometiam muitas novidades. Seria a primeira edição pós agenda 20+20, cujos caminhos apontam para a superação da mácula produzida pelos sucessivos casos de corrupção que corroem o imaginário de valores e virtudes tão bem estruturado ao longo dos tempos.

Seguindo uma tendência de rejuvenescimento, novas modalidades esportivas foram introduzidas no programa, afirmando assim a certeza de que o público jovem acompanharia com interesse e entusiasmo esse momento de virada.

Mas, ao que tudo indica, nem a mente mais bem treinada em planejamento poderia prever a decretação de uma pandemia a poucos meses da realização das competições. Isso prova a humanidade dos Jogos Olímpicos.

Ao longo das últimas décadas, os interesses comerciais pareceram dominar esse campo, minimizando a importância dos atletas ou mesmo do público.

O agigantamento dos interesses comerciais e as somas envolvidas, tanto na estruturação do espetáculo como na sua divulgação, pareciam colocar a dimensão humana da cerimônia de acendimento da chama, que nasceu para consagrar os deuses, em segundo plano. Mas as divindades parecem ter se amotinado, reclamando um retorno às origens.

A cerimonia da tocha, inventada em 1936 para os Jogos de Berlim, sim, aquela edição usada para divulgar a potência do nazismo, foi realizada nesta quinta-feira (12) não a portas fechadas, porque ela ocorre no templo sem cobertura da deusa Hera, em Olímpia, na Grécia, mas sem a presença de público.

O que isso pode significar?

Os mais pragmáticos dirão que foi uma medida preventiva para que um vírus que, como espectro, ronda o planeta. O discurso de esvaziamento aqui cai como uma luva. Poucas pessoas reunidas geram um risco menor de contaminação dessa que parece ser a peste medieval revestida de contemporaneidade.

Se o show deve continuar, então que o raio de sol que banha a Grécia acenda a chama que deverá percorrer o mundo levando a mensagem de paz criada pelo idealista Pierre de Coubertin.

Porém, entre a utopia de Coubertin e as mazelas do mundo atual, há não apenas uma força microscópica a atuar, mas, sobretudo, forças sobre poderosas vestidas de roupagem olímpica e conteúdo sociopolítico com alma maquiavélica hobbesiana.

Na história dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, somente as duas Grandes Guerras foram capazes de interromper as competições, em 1916, 1940 e 1944. Vale lembrar, inclusive, que os Jogos de 1940 deveriam ocorrer em Tóquio, cujas medalhas já haviam sido cunhadas e hoje repousam nas vitrines de alguns colecionadores de memorabilia olímpica.

Nem mesmo a Guerra Fria, com suas múltiplas faces, foi capaz de causar abalos aos Jogos Olímpicos, que sobreviveu aos boicotes de 1980 e 1984.

Nos tempos em que o amadorismo era o pilar central de um movimento que tinha vergonha de dizer que o vil metal corria pelo subsolo olímpico, falar em boicote era permitir que a esfera política interferisse nas decisões de um grupo que se dizia imune às questões de ordem macropolítica.

Por isso, mesmo contra a vontade do presidente Jimmy Carter, os Jogos Olímpicos de Moscou foram realizados. Com muitos atletas e um grande público. Situação que se repetiu quatro anos depois, sem a presença soviética e seus aliados. Os Jogos Olímpicos mostravam a sua força, ainda que desfalcados de parte de suas grandes estrelas.

Neste ano, a força econômica, bem como o imaginário olímpico, estão postos à prova. Diante da ameaça que ronda entre aqueles que se deslocam e frequentam ambientes públicos está a maior celebração esportiva do planeta.

Serão realizados ou não os Jogos de Tóquio? As autoridades sanitaristas dizem que o mundo não voltará ao normal antes dos próximos quatro meses. Isso significa que não haveria tempo suficiente para que se celebrassem os jogos da 32ª Olimpíada. E mais uma vez Tóquio entraria para a história como os Jogos que não ocorreram.

Há quem sugira que as competições sejam realizadas sem público, a portas fechadas, preservando assim os investimentos já feitos. Assim, essa seria uma edição olímpica "virturreal". Ou seja, as competições seriam realizadas, garantindo com os direitos de transmissão o pagamento de parte dos investimentos já realizados, porém sem a memória física de tudo o que cerca esse evento demasiadamente humano, cuja finalidade é provar a excelência de quem compete.

A outra possibilidade seria simplesmente o adiamento ou a suspensão, nome dado ao movimento de países que se negam a se deslocar ao Japão, colocando em risco a saúde de suas estrelas esportivas.
Qual seria, então, a diferença entre os boicotes do passado e o adiamento ou a suspensão atual?

Boicote era o nome dado ao gesto político que envolvia a participação nos Jogos, afirmando assim a relação entre política e esporte. Adiamento ou suspensão é um eufemismo que camufla toda a complexidade que essa pandemia carrega. Fosse apenas um caso de saúde pública, o adiamento estaria justificado.

A certeza que tenho é que, se os Jogos forem realizados a portas fechadas, sem público, mas com as imagens comercializadas para todo o mundo, ficará evidente que a questão central que se discute agora é efetivamente a desumanização desse patrimônio cultural da humanidade e sua afirmação como produto comercial, que como Fausto, já entregou sua alma a Mefistófeles.

Afinal, debater a organização dos Jogos e manter os rituais olímpicos, nesse momento, representa simplesmente atropelar preceitos da agenda 20+20, que colocam o atleta acima de tudo, por questões comerciais.

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