Um mês após o anúncio de socorro aos clubes por parte da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) para tentar mitigar os efeitos da paralisação do esporte durante a pandemia da Covid-19, jogadoras ainda vivem queda de braço com seus empregadores sobre os valores que deveriam ser destinados para o futebol feminino.
A CBF repassou R$ 1.920.000 divididos entre os 16 times da Série A-1 do Campeonato Brasileiro Feminino (R$ 120 mil para cada um) e R$ 1.800.000 para as 36 equipes da Série A-2 (R$ 50 mil por clube).
No dia 24 de abril, a colunista da Folha Renata Mendonça publicou que pelo menos 5 dos 52 times não repassaram nada do valor recebido para as atletas.
Jogadoras do Santos Dumont, equipe do Sergipe que disputa a segunda divisão nacional, abriram uma denúncia no Comitê de Ética da CBF alegando que não receberam o auxílio.
De acordo com a atacante e capitã Lígia Montalvão, que liderou a iniciativa, o presidente do clube, Jogival Melo Passos, ofereceu inicialmente um único aporte de R$ 500 para cada jogadora, referente aos meses de março, abril e maio.
Após negociação, o dirigente aumentou a oferta para R$ 1 mil pelo período. O valor total dos repasses, incluindo a comissão técnica, totalizaria cerca de R$ 35 mil. A justificativa do presidente para que não fosse investida a totalidade do auxílio da CBF no departamento de futebol feminino foi a necessidade de investimento em outros setores do clube.
"Ele [presidente] falou que ia investir no clube, que não tem sede, não tem estrutura, não tem campo, não tem profissionais. Dissemos que a pandemia não era culpa nossa. Ele não queria investir R$ 1 no clube e agora quer dinheiro para aplicar em estrutura? Que estrutura? Aí começou a nossa guerra", afirmou Lígia.
O Santos Dumont conta com um investidor, o empresário Célio França, que assumiu a gestão do time feminino em novembro do ano passado. Ele afirma que mantinha 30 profissionais, entre atletas e comissão técnica, em uma casa na cidade de Carmópolis, onde ganhou ajuda da prefeitura. No início de 2020, a equipe se sagrou campeã sergipana.
O imbróglio com relação ao aporte da CBF ocasionou o desmanche completo do elenco. De acordo com Lígia, França realizou depósitos para ajudar algumas atletas que têm mais necessidade. Há, também, jogadoras que passaram a receber o auxílio emergencial de R$ 600 do governo federal.
"[O presidente] Jogival não foi a uma única partida, não conhece pessoalmente nenhuma atleta. Ele não gastou um centavo, nada. Temos atletas em casos de vulnerabilidade, a maioria delas é de origem pobre. Cabia à CBF pegar com o clube a relação de atletas e depositar diretamente na conta delas. Mas a CBF manda direto para o clube", disse França.
Jogival afirmou que depositou o valor acordado (R$ 1 mil) com as atletas na última terça-feira (5). De acordo com elas, esse dinheiro ainda não está disponível em conta bancária para nenhuma das jogadoras.
"A maioria [das jogadoras] não quer mais [continuar no clube], só queria se fosse da forma delas. Como vamos nos manter agora? Temos quatro jogos a cumprir ainda. Uma parte preciso reter para montar um time quando o calendário voltar", disse.
Quem também apresentou uma denúncia à CBF foi a volante Samara Dias, do Atlético-GO, que disputa a Série A-2 do Brasileiro.
Ela afirma que acordou com o clube uma ajuda de custo mensal de R$ 500, mais premiações por vitória. De acordo com a atleta, que chegou à equipe no início de março, ela nunca recebeu essa ajuda e, durante a paralisação do campeonato em razão da pandemia, teve seu vínculo rescindido com o clube goiano.
"Para falar que não ajudaram em nada, da minha passagem de volta para Palma-MG, que era R$ 260, deram R$ 100", relata.
De acordo com a supervisora de futebol feminino do Atlético-GO, Isabela Borges, o socorro financeiro da CBF chegou às contas do clube na semana passada e está sendo repassado às jogadoras. Ela assegura que 100% do valor será destinado apenas para gastos com a modalidade.
"Todos os meus contratos são de vínculo não profissional. Já é bem claro que nenhuma atleta recebe nem ajuda de custo nem salário. A Samara ficou conosco um mês, foi desligada por motivos internos e não tem direito a esse auxílio [da CBF] pois já não faz mais parte [da equipe]", afirma Borges.
"Elas recebem premiação por jogo. Se ganham, recebem. Perderam de 4 a 0 para o Juventus e não têm direito a nada", completa.
A Série A-2 do Campeonato Brasileiro só teve uma rodada antes da paralisação da disputa. Já na Série A-1, o torneio foi interrompido na quinta rodada.
Com o Brasileiro suspenso em razão da pandemia desde a segunda quinzena de março, as atletas do Juventus ficaram sem receber a ajuda de custo dada pelo clube referente aos meses de março e abril. A diretoria avisou às jogadoras que o repasse da CBF serviria para cobrir esses gastos, mas que a partir de maio não havia garantia de pagamento.
O Juventus recebeu o auxílio da confederação na quarta-feira (6) e, nesta quinta (7), fez as transferências bancárias à equipe. O atraso no recebimento do repasse, de acordo com o clube da Mooca, se deu porque o presidente estava de férias e não pôde se comunicar com a CBF para realizar os trâmites.
"Nossa programação é honrar março e abril, beleza. Aí vamos ver como vai ficar maio. Não vamos fazer loucura, vamos fazer uma coisa gradativa", afirma Claudio Roberto Boaventura, coordenador de futebol feminino do Juventus.
A CBF não criou mecanismos para garantir que os clubes investissem os valores recebidos no futebol feminino. Após denúncias de atletas, tem buscado monitorar mais de perto a situação.
"É responsabilidade do clube cumprir esse acordo com as jogadoras. Tivemos alguns problemas pontuais, sim, mas para isso existem os meios adequados de fazer a denúncia", diz o supervisor de futebol feminino da confederação, Romeu Castro.
"Do ponto de vista ético, esperamos que os clubes cuidem primeiro da situação das atletas, a ponta mais vulnerável", completa.
A ampliação das dificuldades financeiras do futebol feminino não impactou a modalidade somente no Brasil. Em outros países da América Latina, jogadoras também sofreram com a paralisação.
Relatório da Fare Network, ONG que monitora casos de discriminação no futebol mundial, aponta problemas na Colômbia, no Paraguai e no Peru.
Apenas 2 dos 18 clubes da elite colombiana se comprometeram a pagar os salários das jogadoras durante a pré-temporada. O Independiente Santa Fe, que cortou os salários do time masculino em 50%, suspendeu os contratos da equipe feminina.
No Peru, o Universitario, uma das equipes mais tradicionais do país, anunciou no último dia 25 de abril o fim de seu time feminino, atual campeão nacional da modalidade.
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