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The New York Times

Abandono de jogos cria novo marco para protestos no esporte

Atletas negros e seus aliados não hesitarão em fazer outras greves após esta semana

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Kurt Streeter
The New York Times

Foi o silêncio que falou mais alto.

Não se ouvia bolas de basquete quicando na madeira do piso. Todos os jogos foram cancelados. Ou o estrondo do bastão de beisebol ao atingir a bola. Três jogos cancelados. Ou bolas de futebol ricocheteando em campo. Cinco jogos cancelados. Nenhum estrondo de saque violento. O torneio de tênis Western & Southern foi suspenso por um dia.

E o que esse silêncio todo queria dizer era: chega de Jacob Blakes. De George Floyds. De Breonna Taylors. De Natasha McKennas. De Philando Castiles. De Michael Browns. De Tamir Rices. De Eric Garners. De Alton Sterlings. Chega de sofrimento.

Nunca no passado o mundo do esporte havia se pronunciado de maneira tão enfática. E o momento foi sem dúvida significativo. Os atletas decidiram deixar campos e quadras a fim de criar um contraste visível com as visões de medo criadas pelos partidários de Trump na convenção nacional do Partido Republicano.

Nesta semana, vimos duas versões do Estados Unidos em confronto diante de nós, separadas por gerações e por visões radicalmente distintas sobre raça, justiça e o que significa ser patriota.

O esporte deixou de oferecer o protesto chapa branca representado por lemas pré-aprovados pelas ligas inscritos nas camisas. A calma desabou diante do poder inevitavelmente crescente dos jogadores para fazer mais que uma simples declaração. Eles agiram. Isso destruiu a bolha de normalidade que havia sido criada para a NBA e seus torcedores, que assistiam às partidas de casa alegremente enquanto a pandemia e os protestos tomavam as ruas.

“Como cidadãos negros dos Estados Unidos, estamos assustados”, disse LeBron James, acabrunhado, em uma entrevista coletiva concedida dentro da bolha criada pela NBA no Disney World, perto de Orlando, na Flórida.

“Porque você não sabe, você não faz ideia, de qual era o estado de espírito daquele policial ao sair de casa naquele dia”, ele acrescentou. “Você não sabe se ele acordou de bom humor, se ele acordou de mau humor... Ou talvez ele tenha simplesmente saído de casa dizendo que ‘hoje vou pôr fim a uma daquelas pessoas negras’. Essa é a sensação que temos."

Jaylen Brown, do Boston Celtics, falou de modo igualmente emotivo: “Não somos seres humanos? Jacob Blake não é um ser humano? Ele merecia ser tratado como ser humano, e não merecia levar um tiro”.

Sterling Brown, o ala do Milwaukee Bucks que em 2018 foi agredido por policiais e derrubado com um tiro de arma de choque, por uma violação das leis de estacionamento, leu uma declaração ao seu time e concluiu: “A despeito dos apelos generalizados por mudança, não houve ação, e por isso nosso foco hoje não pode estar no basquete”.

Naquele exato momento, a convenção do Partido Republicano representava e abraçava uma visão completamente diferente –de nostalgia pelo passado, medo de mudança e raiva causada por motivos completamente diferentes.

Personalidades esportivas de uma era na qual protestos de jogadores eram mais raros tiveram papel proeminente. Lou Holz, 83, renomado treinador de futebol americano universitário que comandou uma equipe pela última vez há 16 anos, proclamou sua devoção permanente ao presidente Donald Trump e falou triunfantemente de um país no qual qualquer pessoa é capaz de triunfar –basta trabalhar com afinco.

Herschel Walker e Jack Brewer, ambos negros e jogadores aposentados da NFL há mais de uma década, adotaram tom semelhante, elogiando Trump como um cruzado enviado do céu para combater o racismo e como defensor da justiça social, ignorando uma realidade que diz o contrário.

Duas visões. Dois países.

2020 versus o passado.

A NBA não está sozinha. Houve abandono de jogos durante a semana na WNBA e em esportes nos quais os brancos predominam, como o tênis e o futebol profissionais. Jogos foram adiados por conta de protestos de jogadores na Major League Basebal, conservadora e tradicionalista.

A National Hockey League inicialmente manteve o cronograma de seus playoffs, mas cedeu à pressão e decidiu fazer uma pausa em seu calendário.

O que aconteceu representava o passo seguinte, e lógico, para o ativismo inspirado neste ano pela morte de Floyd. Enquanto o país enfrenta 401 anos de traumas raciais, há uma busca por maneiras de romper com a injustiça e a violência sistêmica contra os americanos negros.

Jogadores importantes, como Kyrie Irving, do Brooklyn Nets, declararam que retomar a temporada agora, em meio à pandemia, era um erro e uma distração –e apelaram aos demais atletas que ficassem em casa e trabalhassem pela mudança em suas comunidades.

Mas a NBA e a WNBA voltaram ao trabalho. Os jogadores optaram por usar os jogos transmitidos em rede nacional de TV como plataforma para expor suas queixas. As quadras e as camisas passaram a divulgar lemas e apelos pela mudança. Eles se ajoelharam durante a execução do hino nacional.

Jogadores parados no campo de jogo
Atletas protestam em jogo de beisebol que não aconteceu entre Miami Marlins e New York Mets - Brad Penner/USA TODAY Sports

Mas esses protestos terminaram por perder a força. Os lemas combativos e a recusa a ouvir o hino em posição de respeito pareciam menos ousados quando todo mundo –até mesmo as empresas patrocinadoras– parecia ter aderido ao movimento como se fosse uma moda passageira.

Na verdade, a violência contra as pessoas negras cresceu. E isso gerou a recusa dos jogadores da NBA e outros atletas a jogar, nesta semana. Foi um choque para as ligas, os proprietários e as redes que transmitem esportes ao vivo.

O esporte há muito tempo vem sendo uma plataforma capaz de causar choque ao status quo. Mais de 50 anos atrás, Tommie Smith e John Carlos ergueram os punhos cerrados, envoltos em luvas pretas, em uma cerimônia de medalha na Olimpíada de 1968, na Cidade do México.

Muhammad Ali recusou a convocação para o exército, e lutar na guerra do Vietnã. Maya Moore, estrela da WNBA, e diversas outras mulheres do esporte lutaram por justiça e por igualdade na remuneração. E, é claro, há quatro anos, completados nesta semana, Colin Kaepernick fez seu primeiro protesto contra a brutalidade policial, se recusando a ouvir o hino nacional em posição de respeito.

A recusa a entrar em campo e em quadra que vimos esta semana, no entanto, é mais que um choque. É um terremoto. Um abandono dos jogos como esse jamais havia acontecido no esporte profissional dos Estados Unidos.

Ainda que a paralisação pareça temporária –os jogadores da NBA votaram por retornar, provavelmente no final de semana, e outros esportes vão seguir seu exemplo—, um novo marco foi estabelecido para o protesto.

Os atletas negros e seus aliados não hesitarão em fazer novas greves. Da próxima vez, a paralisação pode durar mais do que alguns dias. Os jogadores podem decidir parar por toda uma temporada. Talvez o protesto envolva a NFL. Talvez os jogadores negros de futebol americano universitário e seus colegas de equipe em universidades como as da Flórida, Alabama e Oklahoma suspendam os jogos.

Talvez o outro lado na disputa decida resistir com violência, recorrendo à repressão habitual e recuando ao passado.

Mas o silêncio falará a todos nós.

Tradução de Paulo Migliacci

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