Descrição de chapéu The New York Times

Arenas esportivas vazias evidenciam valor real da presença de torcedores

Sem a torcida celebrando coletivamente, o esporte profissional perde o sentido

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Kevin Draper
The New York Times

O esporte foi embora e depois voltou a arenas vazias, nos cinco meses de pandemia do coronavírus que passaram, o que coloca os torcedores em posição ainda mais periférica no esporte profissional.

E no entanto algo de engraçado aconteceu —pela primeira vez, o valor real da presença de torcedores ao vivo se tornou abundantemente claro.

O valor não está nas centenas de dólares que eles pagam por ingressos, ou nos gastos com a comida e estacionamento. Tudo isso importa, mas é apenas um acessório, em uma proposta de entretenimento que nos últimos anos parece mais e mais direcionada aos espectadores que acompanham jogos pela TV, pelo celular ou por meio de outros aparelhos.

Sem a torcida lotando o espaço e celebrando em pessoa –coletivamente—, o esporte profissional não perde apenas a empolgação. Perde o sentido.

Uma tacada que decide um título hoje vale tanto, emocionalmente, quanto o primeiro arremesso de uma partida. Os lutadores do UFC não despertam reações emocionais ao subir ao topo da jaula depois de um nocaute, e por isso nem comemoram mais.

Uma cesta no último segundo por um time que está batalhando para chegar aos playoffs é tão emocionante quanto ouvir carros passando na estrada, ao longe.

“Da mesma forma que o coronavírus revelou a importância de pessoas mal pagas e nunca celebradas, como os enfermeiros e os trabalhadores do varejo, acredito que o vírus agora esteja revelando o valor sempre subestimado que a torcida adiciona à equação do esporte”, disse Mack Hagood, professor de estudos de mídia na Universidade Miami, no Ohio. O pesquisador estudou o efeito da torcida do Seattle Seahawks sobre o time de futebol americano.

Nos últimos 100 anos, a economia do esporte se transformou de um negócio de eventos ao vivo em um negócio de mídia. A crise de saúde privou os estádios e ginásios de sua utilidade fundamental –unir milhares de pessoas—, e acelerou a chegada de um futuro de mídia estranho e apocalíptico: transmissões esportivas com áudio simulado criado por companhias de videogames, e torcedores de cartolina ou virtuais nas arquibancadas.

Presumindo que os torcedores um dia retornem, a mudança no papel deles pode ser um dos efeitos duradouros da crise do coronavírus, e reorientar a maneira pela qual são vistos pelos times e pelas ligas que lucram com sua presença. Milhares de fãs em um estádio criam uma atmosfera que é parte essencial, e às vezes é a grande responsável pelo entretenimento que resulta em bilhões em faturamento para as ligas.

Rich Luker, psicólogo social que estuda os torcedores, descreveu uma constatação da Major League Baseball Advanced Media, a divisão de mídia e tecnologia do beisebol profissional, hoje conhecida como BAM, que entre outras coisas seleciona os melhores momentos do jogo para exibição online.

Quando a BAM estudou as jogadas mais assistidas a cada noite, “ficou surpresa ao descobrir, bem cedo no processo, que elas giravam não em torno do que os jogadores fizeram, mas do que os torcedores fizeram nas arquibancadas”, disse Luker.

A mãe que salva um filho de uma bola perdida. Torcidas adversárias duelando com coreografias rivais em arquibancadas da NBA. Um acidente ao modo Três Patetas nas barracas de comida. Os torcedores em casa querem assistir a esses momentos tanto quanto querem ver um home run ou uma bola salva acrobaticamente.

Miami Marlins e Philadelphia Phillies em jogo da MLB, na Filadélfia, com o estádio Citizens Bank Park vazio
Miami Marlins e Philadelphia Phillies em jogo da MLB, na Filadélfia, com o estádio Citizens Bank Park vazio - Hunter Martin - 25.jul.2020/AFP

Os produtores de esportes na televisão estão cientes disso. Eles mostram closes de pessoas atraentes nas arquibancadas, ou torcedores com os corpos pintados nas cores do time. Usam panoramas aéreos obtidos pelo dirigível Goodyear para mostrar a casa lotada, reforçando a sensação de que o jogo é o lugar onde todos querem estar.

Os eventos mesmos se transformaram em espetáculos de entretenimento, com corridas entre mascotes, shows de intervalo, telões descomunais, e numerosas atividades para torcedores que pouco têm a ver com o esporte. Mesmo um século atrás, as transmissões esportivas já incorporavam esse elemento, em alguns casos trocando a realidade pela empolgação.

Quando o beisebol começou a ser transmitido no rádio, na década de 1920, as estações não conseguiam cobrir o custo de transmitir jogos fora de casa. Em lugar disso, elas recebiam informações sobre cada tacada por telegrama, e o locutor transmitia a informação mais ou menos inventando o que tinha acontecido. Sonoplastas criavam efeitos sonoros batendo em blocos de madeira.

De muitas maneiras, aquilo que você ouve em uma transmissão esportiva moderna é igualmente fabricado, produto de dezenas de microfones e das decisões de um engenheiro de som ao calibrar seus volumes.

Os aplausos pífios de uma pequena torcida no Marlins Park podem ser amplificados para fazer com que o estádio pareça estar lotado. Microfones instalados nos protetores de ombro dos jogadores de linha ofensiva capturam as mudanças de jogada ditadas pelo quarterback, como quando Peyton Manning gritava “Omaha” antes de colocar a bola em jogo. A torcida faz com que aquele jogo televisado pareça real.

“Independentemente da pandemia, uma das regras cardeais na transmissão de um jogo é que você quer que haja atmosfera”, disse John Entz, antigo presidente de produção da Fox Sports. “Não há coisa melhor que um estádio lotado e um estádio que favoreça o som, quando a torcida comemora."

Os torcedores que não podem ir a um jogo em pessoa fazem o que podem para recriar a experiência. Assistem às partidas em bares de esporte ou convidam amigos para ver os jogos importantes. Usam os uniformes de seus times e discutem o jogo no Twitter e em mensagens de texto. E quando assistem pela TV, se sentem próximos dos torcedores que estão presentes.

Antes de assumir a presidência da ABC Sports, Roone Arledge, o pai das modernas transmissões esportivas, produzia transmissões de jogos da American Football League, espetáculos de baixa torcida, na década de 1960.

Assim que o punter colocava a bola em jogo, Arledge instruía a câmera a cortar diretamente para o recebedor, em lugar de acompanhar a trajetória da bola. Ele sabia que, se os torcedores vissem o estádio vazio, não se concentrariam tanto no jogo.

Tão logo as transmissões esportivas começaram a dar dinheiro, as necessidades da produção televisiva começaram a ter prioridade ante as dos torcedores.

Em 1958, a NFL criou o tempo da TV, que criava uma pausa no jogo para que as redes pudessem transmitir comerciais. O tempo entre um touchdown e a recolocação da bola em jogo, em seguida, também foi estendido para que comerciais pudessem ser mostrados.

Los Angeles Lakers e Portland Trail Blazers antes de duelo pela NBA, na 'bolha' da Flórida
Los Angeles Lakers e Portland Trail Blazers antes de duelo pela NBA, na 'bolha' da Flórida - Mike Ehrmann/AFP

A experiência do esporte ao vivo foi degradada de outras maneiras. Os torcedores são explorados, com os preços abusivos dos ingressos, o custo estratosférico das comidas, bebidas e produtos, e as taxas de estacionamento exorbitantes. Os torcedores de futebol americano precisam pagar uma taxa adicional pelo privilégio de gastar ainda mais dinheiro comprando carnês de ingressos para toda a temporada.

A alternativa de esportes sem torcida resultou em algumas novidades de apresentação, como a quadra de basquete reinventada pela NBA e a câmera que funciona em um drone nas partidas da Major League Soccer. Mas a maioria dessas inovações aconteceu aos poucos.

“Muito do que estamos vendo no ar já havia sido testado nos últimos anos”, disse Brad Zager, diretor de produção da Fox Sports. “O que aconteceu só acelerou o processo."

Na verdade, o setor de esportes trabalhou duro para que jogos realizados nas circunstâncias mais anormais parecessem tão normais quanto possível. As arquibancadas estão cheias de bonecos e figuras de cartolina, e a Fox tentou usar imagens de torcedores geradas em computador.

As tomadas que mostram as arquibancadas não estão sendo usadas, e o foco da câmera nos jogadores é estreito. Companhias de videogames, como a Electronic Arts, foram contratadas para fornecer seus arquivos sonoros.

No ano 2000, a rede CBS foi criticada por adicionar sons artificiais de pássaros à transmissão de um torneio de golfe, e prometeu que nunca mais o faria. Passados 20 anos, quase tudo é artificial.

E não importa o quanto os produtores batalhem para convencer o público de que tudo está normal, bastam alguns minutos para que o artifício inevitavelmente se revele. Sem torcedores nas arquibancadas, é difícil encontrar sentido.

Tradução de Paulo Migliacci

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