Cometi um erro inaceitável e fui entender o que é racismo, diz Arthur Nory

Ginasta, que ofendeu colega negro em 2015, vê necessidade de desconstruir 'bolha' do esporte

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São Paulo

Arthur Nory, 26, tem um bronze olímpico no solo (Rio-2016), um título mundial na barra fixa (2019), além de outras conquistas que o tornam um dos principais ginastas brasileiros. Esses feitos, porém, quase sempre foram acompanhados nas redes sociais por lembranças de um episódio ocorrido em 2015.

Naquele ano, Nory publicou um vídeo de um almoço entre ele, Felipe Arakawa, Henrique Flores e Angelo Assumpção (todos da seleção brasileira no momento) no qual direcionavam ao último, que é negro, a pergunta: "O saco do supermercado é branco, o de lixo é preto, por quê?"​.

“Entendo que cometi um erro, um erro inaceitável, e fui atrás para entender o que é o racismo, o que é um racismo estrutural, o que é o racismo recreativo que é mascarado em piada”, diz Nory à Folha.

Ele conta que durante os últimos cinco anos preferiu, em entrevistas, não abordar detalhes do caso, pelo qual foi indiciado, mas agora percebeu essa necessidade.

Na época, Nory, Arawaka e Flores foram suspensos esportivamente por 30 dias e se desculparam publicamente.

A lembrança do episódio ressurgiu após a Globo revelar um relatório do Pinheiros com denúncias de injúrias raciais e assédio moral na ginástica. O clube que Nory (não envolvido nesse caso) defende rescindiu o contrato com Angelo, um dos denunciantes, em novembro do ano passado.

O motivo apresentado de forma vaga pela entidade cita questões técnicas, financeiras e comportamentais, mas Angelo vê racismo na demissão.

Na ginástica são diversos os casos similares. O ex-treinador da seleção brasileira Fernando Lopes chegou a ser banido do esporte após acusações de abuso sexual de menores, mas a punição foi revertida em junho. Ele também é réu em caso que corre na 2ª Vara de São Bernardo do Campo.

O médico Larry Nassar, que trabalhava na federação de ginástica dos Estados Unidos, somou mais de 300 anos de condenação em 2018 após quase 300 mulheres o acusarem de abuso sexual. Esse caso chamou a atenção para o tema mundialmente, virou tema de dois documentários (Netflix e HBO) e desencadeou novas denúncias.

Nory diz nunca ter identificado ofensas direcionadas a ele no ambiente do esporte, mas entende que há uma cultura velada de preconceitos e assédios que precisa ser combatida.

*

Você já sofreu algum tipo de preconceito no esporte? Sempre procurei me blindar, me esquivar, nunca dei importância, embora saiba [hoje] que é importante. A partir do momento em que foi furada essa bolha, eu parei para pensar. Mas nessa trajetória não identifiquei e procurei não ficar preocupado com isso.

Por que denúncias de preconceito e assédio são recorrentes na ginástica? Nunca paramos para pensar. Com 10 anos você já está competindo, não tem essa compreensão. A gente tem que buscar essa consciência para se desenvolver. Você vai ouvir bronca, vai ouvir puxão de orelha de vez em quando, mas tem que ser apurado como isso é feito. E hoje as pessoas estão falando, estão se posicionando, o que é muito importante. A ginástica é um esporte que começa muito cedo, um esporte com o corpo, às vezes o treinador precisa [tocar no atleta]: ‘olha, o seu braço, esse braço aqui’. É essa linha tênue do que é uma bronca para o seu bem para o que é um assédio.

Qual o papel das instituições nesse processo? Diversas instituições dentro do esporte já estão promovendo palestras, debates, trazendo pessoas informadas para compartilhar esse conhecimento, para pessoas se policiarem, para desconstruir essa bolha social que a gente vive dentro do esporte. Não é só treino e resultado, existe algo muito maior, o esporte está inserido em uma sociedade. Precisa trazer esses assuntos ali para dentro, desenvolver o cidadão, o ser humano. A partir do momento em que eu saí para ver tudo que estava acontecendo, fui buscar esse conhecimento, essa desconstrução. É reflexo de uma sociedade.

O ginasta Arthur Nory, acusado de ter sido racista e que diz buscar se desconstruir para acabar com o preconceito no esporte
O ginasta Arthur Nory, acusado de ter sido racista e que diz buscar se desconstruir para acabar com o preconceito no esporte - Danilo Verpa/Folhapress

Quando foi esse momento? A partir de 2015. Quando a gente vivia e convivia ali, quando postei o vídeo e deu uma repercussão muito grande. E aí fugiu desse convívio social. Existem momentos em que você passa do limite e não percebe. A gente convive muito diariamente, e ali, naquele momento que você posta alguma coisa que sai, você ‘opa, o que está acontecendo? O que eu fiz?’. Aí fui entendendo. Não logo em seguida, com o tempo a gente vai aprendendo, e sei que foi uma atitude muito errada, que não dá para aceitar. E que isso seja um começo para mudança, olhar o reflexo social que está inserido dentro do esporte, que é para ser um ambiente de inclusão e transformação. Então vamos tomar medidas para que isso não ocorra mais e para as próximas gerações virem tranquilas.

No seu entendimento atual, intencionalmente ou não, cometeu um ato racista em 2015? Entendo que cometi um erro, um erro inaceitável, e fui atrás para entender o que é o racismo, o que é o racismo estrutural, o que é o racismo recreativo que é mascarado em piada, que é esse racismo velado e que é reproduzido por todos nós. Eu tinha duas escolhas, continuar sendo aquela pessoa conivente, que vai propagar isso, ou a mudança. A primeira coisa foi me reconhecer ali, o que fiz e o que posso fazer para mudar. Ir atrás do Angelo, pedir perdão. E sei que é um direito dele aceitar ou não, mas é minha obrigação buscar aprender e acabar com essas atitudes dentro do nosso ambiente.

O que você entende que pode fazer? Do que estaria disposto a abrir mão pela luta antirracista? É isso que eu quero saber. Procurei debater com pessoas que são engajadas, tanto movimento negro, quanto movimento LGBT, [para] entender todas as causas e qual o meu papel, como posso ajudar. Ainda estou nesse processo, porque durante esses cinco anos fiquei sempre me culpando e não queria falar, porque meu teto é de vidro. Para mim soava como hipocrisia. As pessoas vindo me atacar quando eu estava com amigos negros, ‘olha que hipócrita, que oportunista’, e aquilo me silenciava. A partir do momento que tive essa compreensão, não dá mais para ficar calado.

Há recorrência dessas atitudes que são chamadas de “brincadeiras”? Como isso funciona? Dentro de uma equipe, existe. As pessoas muitas vezes vão querer usar, querer encontrar algum furo [em você]. Não sei informar, como falar. A gente convive muitos anos e sabe como é a pressão dentro de um esporte, de um meio competitivo.

Incomoda o fato de suas conquistas trazerem sempre a repercussão pelo caso de 2015? Sim, porque foram cinco anos em que eu nunca me pronunciei, nunca me posicionei, e isso fica martelando. Sinto que errei, que preciso aprender, mas que eu não posso falar, porque as pessoas já vão me julgar de qualquer jeito. Acho que é importante falar: reconheço o meu erro, mas estou buscando essa mudança.

E procurando entender por que muitas pessoas me atacam com ódio, mandando para aquele lugar, querendo me matar, dar porrada. Então o que eu faço? Fico quieto, realmente apanho? Preciso aprender. Nas minhas redes, você vai ver de ‘filho da puta’, até ‘seu racista merda do caralho’, e vejo que não é assim o combate, através de guerra por guerra. Mas entendo que as pessoas podem ter se sentido muito ofendidas e estão nesse combate agressivamente.

Você e o Angelo eram próximos? Muito. A mãe dele ligava para mim. Todo final de semana ele ia na minha casa, a gente passava Ano Novo juntos, aniversário juntos. Meus tios vendem pastel na feira, e a gente ia junto vender pastel com eles. E isso sinto que a gente perdeu. Não tem o que falar, o que preciso fazer sou eu mudar e mudar minhas atitudes.

O que você gostaria de dizer a ele? Mais uma vez, pedir perdão, e também para ele ver essa transformação do Nory, que estava sempre ao lado dele, em todos os momentos da vida. Quero dizer para ele que estou disposto e aberto a aprender com ele, e a ouvir.

De todas as pessoas no vídeo, por que você ficou mais marcado? Por ter uma intimidade, uma maior relação com ele. Entendo que ele ficou extremamente chateado. Porque eu estava ali junto, rindo, eles falando e eu não fiz nada para parar.

Enquanto nos EUA casos de violência policial fora do esporte tem parado competições, no Brasil não se vê mobilização dos atletas nem com casos dentro das modalidades. Por que e como mudar isso? Por falta de conhecimento, compreensão, informação. Dos atletas entenderem a forma como é a cobrança, a pressão por resultado, o que fazer para almejar os seus resultados no esporte. Acho que é a gente ir buscar entender que tem atitudes que não são brincadeiras, não são piadas. A gente não pode fechar os olhos ou se calar. O importante é encarar, identificar e reportar, principalmente.

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