Descrição de chapéu The New York Times

Debate sobre atletas transgêneros tem muitos argumentos e poucas conclusões

Esporte ainda tenta encontrar ponto de equilíbrio entre inclusão, igualdade e segurança

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Gillian R. Brassil Jeré Longman
The New York Times

Uma lei restritiva adotada pelo estado do Idaho —e suspensa temporariamente por um juiz federal americano na noite de segunda-feira (17)— intensificou um debate já acalorado sobre quem deve ter direito a competir no esporte feminino, em um momento no qual atletas transgênero ganham aceitação no esporte, mas continuam a enfrentar forte resistência de alguns competidores e legisladores.

Embora as visões científicas e sociais sobre identidade de sexo e gênero tenham mudado significativamente nas últimas décadas, uma questão incômoda persiste quanto a atletas em transição do sexo masculino para o feminino: como encontrar o ponto de equilíbrio entre inclusão, igualdade de condições nas competições e segurança.

Não existem diretrizes uniformes para determinar a elegibilidade das atletas transgênero (as batalhas políticas até agora se concentraram primordialmente na regulamentação dos esportes femininos).

E não existe muita pesquisa sobre atletas transgênero nas categorias de mais alto desempenho, para orientar os dirigentes esportivos em suas tentativas de oferecer acesso equitativo ao esporte e ao mesmo tempo conciliar as vantagens fisiológicas residuais que podem advir da puberdade.

Eric Vilain, um geneticista especializado em desenvolvimento sexual que assessorou a NCAA, a confederação de esportes universitários dos Estados Unidos, e o Comitê Olímpico Internacional (COI) quanto às regras para atletas transgênero, disse que os líderes esportivos se viam diante de duas posições “quase irreconciliáveis” para determinar elegibilidade –uma baseada no gênero que o atleta declara e outra em testes biológicos de confirmação.

Em março, o Idaho se tornou o primeiro estado americano a proibir as mulheres transgênero de participar de eventos esportivos femininos.

A lei, aprovada em julho pelo legislativo estadual, controlado pelos republicanos, e sem apoio do Partido Democrata, requer que os atletas participem de esportes de acordo com o sexo que tinham ao nascer. Qualquer disputa quanto à elegibilidade de um atleta requereria exame físico, genético ou hormonal conduzido por um médico.

A proibição foi contestada por uma atleta transgênero em um tribunal federal do Idaho, com a afirmação de que ela violava a proteção igual conferida pela 14ª emenda à Constituição dos Estados Unidos.

David Nye, um juiz de primeira instância da Justiça federal americana, suspendeu temporariamente a aplicação da lei na segunda-feira, escrevendo, em uma liminar de 87 páginas, que “a proibição categórica a mulheres transgênero contrasta fortemente com as normas dos órgãos atléticos de elite que regulam os esportes, nacional e internacionalmente”, que permitem que mulheres transgênero participem de competições esportivas universitárias e das Olimpíadas, sob determinadas condições.

Embora a decisão não seja definitiva, foi uma vitória para Lindsay Hecox, que é transgênero e contestou a lei em abril, em seu esforço por integrar a equipe de corrida-cross country da Universidade Estadual de Boise. “Sou uma garota, e a equipe certa para mim é a equipe feminina”, disse Hecox na segunda-feira.

A liminar foi um revés para o governo Trump e para Barbara Ehardt, a deputada estadual republicana do Idaho que propôs a lei.

Em entrevista recente, Ehardt, que jogou basquete na universidade e foi treinadora de uma equipe universitária de basquete na primeira divisão da NCAA, expressou preocupação com a possibilidade de que as vantagens físicas residuais que atletas transgênero podem ter acarretem uma possível redução na participação das mulheres cisgênero nos esportes (cisgênero significa que a pessoa mantém a identidade sexual com que nasceu).

Ehardt disse que “o progresso que nós, como mulheres, conquistamos nos últimos 50 anos seria em vão e seremos forçadas a nos tornar espectadoras em nossos próprios esportes”.

O caso do Idaho e um processo judicial no Connecticut que contesta a elegibilidade de atletas transgênero para competições escolares geram questões complicadas sobre o acesso equitativo ao esporte, sobre direitos humanos e sobre vantagens e desvantagens esportivas.

Não existem muitas pesquisas científicas sobre o desempenho de atletas transgênero em categorias de elite, dizem especialistas. Mas alguns indicadores apontam que as vantagens residuais de força e massa muscular permanecem quando pessoas que nasceram homens passam por terapia de supressão da testosterona por um ano.

Para complicar ainda mais as coisas, surgiram questões médicas e éticas sobre se qualquer mulher deve ser forçada a reduzir seus níveis de testosterona para poder competir no esporte.

Na puberdade, os atletas homens em geral ganham vantagem fisiológica para muitas modalidades esportivas, como por exemplo uma estrutura óssea maior, mais massa muscular e força, e maior capacidade de oxigenação. Em questão, para os cientistas e dirigentes esportivos, está determinar em que medida a terapia de supressão de hormônio reduz essas vantagens.

Ao contrário do que alguns observadores temiam, não surgiu até agora um domínio generalizado do esporte pelas mulheres transgênero.

Os historiadores das Olimpíadas dizem que nenhum atleta olímpico, nos Jogos de verão ou inverno, se identificou como transgênero ao competir, até agora.

A Olimpíada de Tóquio, adiada para 2021 devido à pandemia do coronavírus, pode incluir atletas transgênero como Chelsea Wolfe, dos Estados Unidos, no ciclismo BMX; Tifanny Abreu, do Brasil, no vôlei; e Laurel Hubbard, da Nova Zelândia, no halterofilismo.

As organizações esportivas variam em suas abordagens quanto aos atletas transgênero. O estado do Connecticut, por exemplo, permite que atletas compitam de acordo com o gênero que declaram, sem restrições.

Em fevereiro, as normas da Conferência Atlética Interescolar do Connecticut foram contestadas por três mulheres cisgênero: Selina Soule, Chelsea Mitchell e Alanna Smith.

O processo, que ainda está em curso, se referia a Terry Miller e Andraya Yearwood, duas velocistas que conquistaram 15 títulos estaduais, entre elas. O domínio delas nas provas de velocidade priva as atletas cisgênero de oportunidades esportivas e de potenciais bolsas de estudo universitárias, o processo argumenta.

Em maio, a divisão de direitos civis do Departamento da Educação americano decidiu que as regras das escolas secundárias de Connecticut violavam a lei federal americana que proíbe discriminação com base em sexo.

“Todas as atletas biologicamente femininas sabem quem vai vencer antes da largada, e é triste ver todo o nosso treinamento desperdiçado”, disse Smith em entrevista.

A posição da organização de esportes escolares do Connecticut é que múltiplas decisões de tribunais federais e de agências do governo federal reconheceram, com relação à lei que proíbe a discriminação sexual, que o termo “sexo” é “ambíguo” e que “seu uso histórico não acompanhou a ciência contemporânea, os avanços do conhecimento médico e as normas sociais”.

Miller, a atleta transgênero que domina o esporte do Connecticut, afirmou em comunicado divulgado em fevereiro que “quanto mais nos dizem que não somos bem-vindas e deveríamos nos envergonhar de quem somos, menos oportunidades teremos de participar do esporte”.

Terry Miller se alonga em pista de atletismo antes de competição
Terry Miller, dominante em Connecticut, se alonga antes de competição - Jessica Hill/The New York Times

Hoje, cerca de 200 mil atletas concorrem no esporte universitário feminino. A médica e pesquisadora Joanna Harper estima que cerca de 50 delas sejam transgênero.

As regras da NCAA requerem que uma mulher transgênero passe por terapia de supressão de hormônio por um ano antes de se tornar elegível para provas femininas. Mas a NCAA diz não estabelecer limites permissíveis de testosterona para as atletas transgênero.

Em agosto de 2019, June Eastwood, da Universidade de Montana, se tornou a primeira mulher transgênero conhecida a participar de uma corrida cross-country organizada pela NCAA. Antes da transição, Eastwood era um dos principais atletas da equipe masculina de corrida e atletismo de Montana. Mas no cross-country feminino, ela terminou em 60º lugar em uma prova regional e não se qualificou para o campeonato nacional.

Quatro anos antes, Harper publicou o primeiro estudo quanto ao efeito da terapia hormonal – que envolve supressão de testosterona e aplicação de estrógeno – sobre o desempenho de atletas transgênero.

A pesquisa dela constatou que um grupo de oito fundistas transgênero que não eram atletas de elite não haviam se tornado mais competitivas como mulheres do que eram como homens. As constatações do estudo sugerem que a vantagem de desempenho sobre as mulheres cisgênero nem sempre foi mantida, e que as mulheres transgênero enfrentavam redução de velocidade, resistência e capacidade de oxigenação.

No entanto, Harper ressaltou que sua pesquisa se aplicava apenas a fundistas, e que velocistas transgênero podem reter vantagem sobre velocistas cisgênero porque tendem a ter mais massa muscular para se impulsionar em distâncias mais curtas.

Um estudo publicado em 2019 sobre 11 mulheres transgênero, na Suécia, constatou que, depois de um ano de terapia de supressão de testosterona, elas registraram declínio irrelevante em força nos músculos de suas coxas, e uma perda de massa muscular de apenas 5%.

Um dos pesquisadores envolvidos, Tommy Lundberg, do Instituto Karolinska, nas cercanias de Estocolmo, disse que as participantes não eram atletas treinadas e que seria difícil especular sobre mudanças físicas em atletas de elite porque “não existem estudos longitudinais”.

“É fácil simpatizar com os argumentos propostos pelas duas partes”, disse Lundberg sobre a questão da identidade de gênero versus biologia. Mas, acrescentou, “será impossível contentar a todos”.

Tradução de Paulo Migliacci

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