Descrição de chapéu Futebol Feminino

Mulher gosta de futebol e o vê como atuação política, diz historiadora

Para Diana Mendes, esporte é visto como chance de abrir canais de representatividade

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São Paulo

Se as jogadoras hoje recebem pagamentos iguais de diárias aos dos jogadores na seleção brasileira de futebol, isso só foi possível graças a anos de luta por igualdade.

Ao mesmo tempo, se dentre os quatro maiores clubes de São Paulo houve apenas uma mulher presidente e menos de 5% dos conselhos são compostos por sócias, isso é sinal de que a equidade de gênero no esporte ainda é meta distante.

"Diria que é um resultado de uma história que não dá visibilidade à atuação, participação e protagonismo feminino", afirma à Folha Diana Mendes Machado da Silva, historiadora que pesquisa a formação do futebol no Brasil.

Sua tese de doutorado, publicada em 2019, se chama "Futebol e cultura visual: a construção da figura do craque". Versa sobre como a fotografia construiu o imagético da bola por meio de dois personagens, Leônidas da Silva (negro, inventor da bicicleta e um dos primeiros grandes jogadores brasileiros) e Marcos Carneiro de Mendonça (branco, goleiro do Fluminense e visto como o primeiro galã do esporte no Brasil).

A partir desse estudo e de seu primeiro, sobre a formação dos clubes paulistas e a várzea, ela reflete sobre o lugar da mulher no futebol, do ostracismo à luta para ganhar espaço e o protagonismo cada vez maior atualmente.

"Essa linguagem futebol e essa adesão que o futebol tem no Brasil é um canal muito interessante da participação feminina. Isso foi captado pelas mulheres. Elas gostam de futebol e olham essa dimensão como atuação política", diz.

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Como é construída a ideia do craque e qual o papel do negro nesse processo? Até 1930, as fotos eram estáticas. Essa foto posada dos jogadores [enfileirados em pé e agachados] passou a representar toda a prática esportiva. Foi possível ver que negros estavam começando a fazer parte de fotografias, até então algo só de brancos, por causa das ligas começarem a incorporar clubes suburbanos, de fábrica, no qual jogavam pessoas de classes populares. O retrato [individual] do jogador negro começa com Leônidas da Silva, a partir dos anos 1930.

Esse processo da passagem de retratos de equipe para retratos de figuras negras é o processo de construção da figura do craque. Isso não foi construído com Neymar, Ronaldo, Romário. Leônidas é o primeiro nesse modelo. E isso tem a ver com o negro. Acabou a escravidão, como o negro vai participar da sociedade de classes, no mundo do capital? Foi aberto esse microespaço.

Dentro dessa construção da figura de um craque, em que apareceu o negro, houve espaço para as mulheres? Você não vê muitas mulheres nessas fotografias. Nos anos 1930, e até onde conhecemos hoje, ela se torna a figura que legitima, dá o selo de garantia de que de fato o Neymar, o Pelé são craques. Tem essa ideia em um namoro, um compromisso, um casamento. Você não vê craque sem mulher.

E tem a mulher que reconhece essa dinâmica e quer fazer parte dela a partir de outro lugar, quer jogar futebol ou fazer parte dos conselhos de direção. Nos documentos oficiais dos clubes [desse período], não achei a participação de mulheres em campo, mas tiveram mulheres que falavam nas reuniões, que queriam fazer parte dos conselhos dos clubes, se associar. E a participação destinada a elas era na parte social dos clubes [como festas, bailes etc].

Diana Mendes, 43, historiadora que pesquisa o futebol no Brasil, em sua casa
Diana Mendes, 43, historiadora que pesquisa o futebol no Brasil, em sua casa - Mathilde Missioneiro - 05.set.2020/Folhapress

Levantamento da Folha mostrou que as mulheres não representam nem 5% dos conselhos dos grandes clubes de SP. Como você analisa esse dado? Diria que é um resultado de uma história que não dá visibilidade à atuação, participação e protagonismo feminino. O momento em que [os quatro maiores clubes de São Paulo] se formaram e fizeram seus estatutos é o mesmo que no mundo você tem a luta das mulheres por participação política do ponto de vista legal, nas constituições, anos 1920 e 1930 do século passado. Você tem a percepção social de que as mulheres querem mais participação política e isso começa a ficar garantido no papel, como com o poder de voto, embora no discurso [tenha a ideia de que] as mulheres ainda não têm capacidade para isso.

E como isso acaba no que vemos hoje? Você começa a produzir informalmente uma proteção para a manutenção de lugares de poder. Tem 4 mitos interligados. O mito de que as mulheres não gostam do esporte; o de que, por não gostarem de futebol, não têm experiência com relação à dinâmica do futebol, tanto jogo, quanto política; terceiro: não tendo experiência, não têm capacidade de atuar, seja esportiva, seja politicamente. E não tendo essa capacidade, é melhor que a gente tenha um homem.

Qual a importância de mulheres que conseguem ascender neste espaço, como a Marlene Matheus, que muitos dizem que apenas chegou à presidência por ser esposa do Vicente Matheus, cartola histórico do Corinthians? No caso da Marlene, quando se vê uma mulher presidente, você pensa "como vou compreender isso?". Você vai atrás da história pessoal dela, que mostra que era casada com o Vicente Matheus. Do ponto de vista democrático, você tem que olhar para a atuação dela, o que aconteceu ali? Interessa muito que ela até hoje é a única mulher. Essa representatividade abre possibilidade para que outras mulheres possam ser eleitas, consideradas, isso é inegável, é o papel histórico dela, quebrar uma barreira centenária de um lugar de decisão. Não tem como uma pessoa como ela ou qualquer outra, que está excluída dessa esfera [de poder], não trazer algo diferente. Ela conseguiu romper com a reserva de vagas, eu chamo de ‘cotas para homens brancos’.

Você falou em cotas para homens brancos… Quando o Brasil se torna uma República, tem uma vanguarda, não só na política, mas também nos clubes, falando de igualdade. É sempre bom falar que sou mais moderno do que eu realmente sou. Cotas para homens brancos significa você estabelecer um estado democrático de direito com inspiração republicana em termos de promessa, enquanto as práticas são de reprodução e manutenção de poderes e lugares sociais. Reprodução e manutenção de homens brancos.

Você vê semelhança entre o espaço da mulher na política e no futebol? É um espelho da vida institucional política e brasileira, na medida do que a gente viu sendo configurado como reserva de vagas. É muito similar ao que acontece na política institucional, um espelho que amplifica essa dificuldade de acesso. A gente [mulheres] não participa de órgãos deliberativos, só vota de quatro em quatro anos.

E qual lugar atualmente o futebol reserva para a mulher, fora de campo? ​A participação das mulheres nas torcidas se tornou fundamental, elas conseguiram pautar questões como o assédio. Essa dimensão ainda é machista, mas um pouco mais democrática. Então deveria haver uma conversa, inclusive do ponto de vista institucional, para uma secretaria do esporte sentar com os clubes para pautar essas questões. É possível, por exemplo, acrescentar um item no estatuto: ‘tem que haver 30% [de mulheres nos clubes]’. Isso não é nenhuma catástrofe, não muda muita coisa, tal como as mulheres nos partidos e no Congresso [onde, por lei, os partidos precisam ter 30% de candidaturas femininas nas eleições].

Por que nas torcidas? Como essas pessoas estão menos nesse jogo da reserva de vaga e são a ponta ligada à sociedade, é a possibilidade de abrir canais de representatividade. Essa linguagem futebol e essa adesão que o futebol tem no Brasil é um canal muito interessante da participação feminina. Isso foi captado pelas mulheres. Elas gostam de futebol e olham essa dimensão como atuação política. No clube demora mais. É como se a torcida fosse a ponta de lança onde as coisas acontecem, o primeiro sintoma de que há mudança.

Como você avalia o momento histórico da mulher no futebol atualmente? Sempre tiveram mulheres interessadas na política e no futebol, mas o que a gente tem é uma ampliação em número de mulheres, e isso tem a ver com o trabalho das mulheres anteriores, de lutar, abrir espaço, se destacar. Quando você tem visibilidade, põe pautas novas em circulação. Vejo com otimismo, embora ainda insuficiente, o maior número de representantes e maior visibilidade feminina. Uma pequena parcela vai se arrepiar, mas já está na hora.

Quais são os espaços de inclusão no futebol hoje, não só de mulheres, mas de outros lugares de fala da sociedade? Tem o nascimento de clubes de futebol de várzea associados a grupos. Mulheres periféricas mães da zona sul [de São Paulo] criaram um clube de futebol, o Perifeminas. Tem grupos que se identificam como homens transgêneros, ou mulheres trans. É uma espécie de duplicação. Como não podemos ter a participação como deveria, a gente cria um clube nosso. Esses clubes amadores são muito ricos nesses símbolos. E nas torcidas também. Pensando sempre que o futebol é lugar de circulação de ideias. O circuito do mercado são os grandes clubes. O popular tem menos dinheiro, menos controle dos símbolos e reservas de vaga, embora também tenha.

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