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Fábrica de talentos, Argentina vê sua presença na elite europeia minguar

Concorrência do Brasil na venda e desorganização do futebol local contribuem para queda

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Rory Smith
The New York Times

Angel di María jamais voltou para casa. O verão de 2007 tinha sido bom para ele. Ele tinha 19 anos e passou cerca de um mês no Canadá, representando seu país na Copa do Mundo sub-20. Ele se saiu muito bem, marcando três gols, e o mesmo pode ser dito sobre seu time: da mesma forma que em 1995, 1997, 2001 e 2005, a Argentina ganhou o torneio.

A estrela dele subiu com tanta rapidez que, quando o avião que estava carregando a seleção pousou em Buenos Aires, Di María mal teve tempo de passar pelo controle de passaportes.

“Quanto aterrissamos, ele saiu de nosso avião e embarcou em outro a caminho da Europa”, disse Hugo Tocalli, o treinador da seleção argentina naquele torneio. “Literalmente embarcou direto."

Di María comemora gol para a seleção argentina na Copa do Mundo de 2018
Di María comemora gol para a seleção argentina na Copa do Mundo de 2018 - John Sibley/Reuters

A primeira parada de Dí Maria foi o Benfica, o primeiro passo de uma jornada que o levou ao Real Madrid, Manchester United e, agora, Paris St.-Germain. Ele não foi o primeiro integrante daquela seleção jovem a cruzar o oceano. Três de seus colegas no time —entre os quais Sergio Agüero— já tinham sido contratados por clubes europeus. E ele não foi de maneira alguma o último. Em pouco mais de um ano, nove integrantes do time de Tocalli aceitaram propostas para deixar a Argentina.

“Era a mesma coisa toda vez”, disse Tocalli, que fez parte das comissões técnicas nas cinco conquistas de títulos argentinas daquele período. “Fomos ao Qatar e terminamos campeões. Fomos à Malásia e terminamos campeões. Depois de cada título os jogadores partiam para a Europa e mais tarde passavam a fazer parte de nossa seleção principal."

Quando ele lista os nomes, não é difícil entender o motivo: Walter Samuel, Esteban Cambiasso, Pablo Aimar, da seleção de 1997; Nicolás Burdisso, Maxi Rodríguez e Javier Saviola, em 2001; Fernando Gago, Pablo Zabaleta e, é claro, Lionel Messi, da seleção que venceu a Holanda em 2005. A Argentina, naqueles anos, parecia contar com um suprimento inesgotável de adolescentes incrivelmente talentosos, prontos a conquistar o planeta.

Tocalli continua a trabalhar no desenvolvimento de jogadores jovens, como parte da comissão técnica do San Lorenzo. Ele continua a avaliar numerosos jogadores potencialmente talentosos. E continua a acreditar que a Argentina produz grandes jogadores. “O talento continua a existir”, ele disse. “Continuamos a ter jogadores, por aqui."

Isso pode não ter mudado, mas alguma coisa mudou. Uma década atrás, havia 47 jogadores argentinos jogando na Série A italiana; este ano, apenas 24 deles estão registrados. Em 2014, havia 23 argentinos na Premier League; hoje são apenas 11.

E, como percebeu o jornalista argentino Juan Pablo Varsky, cerca de metade deles —Agüero, Willy Caballero e Sergio Romero entre eles— estão na porção final de suas carreiras. Os herdeiros deles ainda não surgiram. A Europa, não muito tempo atrás, contratava jogadores argentinos tão rápido quanto eles surgiam. Agora parece que a linha de produção travou.

Poucos anos atrás, dois olheiros do FC Copenhagen, um dos maiores times da Dinamarca, chegaram a Avellaneda —cidade logo ao sul de Buenos Aires— a fim de ver um jovem talento jogando pelo Racing Club. O único problema é que não conseguiram determinar exatamente como entrar no estádio.

Na Europa, existe um acordo tácito entre os clubes para facilitar o trabalho dos olheiros: eles recebem ingressos de cortesia em bons pontos do estádio, normalmente em companhia de seus colegas ou nas partes mais tranquilas da arena, como a tribuna de imprensa ou os camarotes de diretoria.

Na Argentina, o trabalho dos olheiros sempre foi um pouco mais complicado. Os dois olheiros dinamarqueses —cujos telefonemas e emails ao clube argentino não foram respondidos— não tiveram escolha a não ser comprar ingressos e se acomodar em meio aos torcedores, por trás de um dos gols. Não era de maneira alguma o melhor ponto para avaliar um possível contratado.

O incidente inspirou o Racing a facilitar a vida dos olheiros, mas o coordenador dos observadores do clube, Diego Huerta, disse que ainda continuava “complicado” para olheiros europeus assistir a jogos ao vivo na Argentina. Isso contrasta não só com a Europa mas também com o grande rival da Argentina no continente, o Brasil.

O Brasil —em parte por motivos históricos e em parte pelo seu imenso tamanho— vem sendo o maior exportador de jogadores do futebol, há muito tempo. Em maio, um relatório do CIES Football Observatory mostrou que existiam 1.535 brasileiros jogando futebol profissional fora do Brasil. A Argentina jamais conseguiu se aproximar desse número, evidentemente, mas alguns anos atrás estava reduzindo a distância.

Em 2014, de fato, a Argentina vendeu mais jogadores ao exterior do que o Brasil. Nos anos imediatamente anteriores, o Brasil manteve vantagem muito pequena. Agora, porém, a linha de montagem da Argentina entrou em colapso —o CIES descobriu que o país exportou apenas 78 jogadores em 2019— e os números do Brasil voltaram a crescer.

As pessoas que trabalham com recrutamento de jogadores na Europa atribuem o acontecido a duas tendências. Uma é o padrão do treinamento dos juvenis no Brasil, que muita gente hoje considera como equivalente ao europeu. A segunda é a relativa facilidade de negociar com os clubes brasileiros. “Eles convidam os olheiros para fazer visitas, mostram suas academias, oferecem café, falam sobre os jogadores”, disse o chefe de recrutamento de um grande clube europeu: “São mais transacionais”.

A maioria dos departamentos de futebol dos grandes clubes conta, em algum lugar de seu software de recrutamento criptografado, com uma lista que compara os pontos fortes de dezenas de ligas em todo o mundo. Na maioria das listas, a Premier League e La Liga lutam pela supremacia; a Alemanha tende a ocupar o terceiro lugar.

A lista funciona como uma mistura de cola para as provas e de equação e serve para ponderar os méritos de jogadores de diferentes países e em diferentes contextos. Se um time está de olho em dois atacantes, um na França e um em Portugal, a lista permite que o clube avalie o que o perfil de dados de cada jogador significa em comparação a outros jogadores.

A 21st Club, uma empresa de serviços analíticos —que fornece dados e observações a diversas companhias na Europa—, tem um modelo próprio. A primeira divisão Campeonato Brasileiro ocupa o sexto lugar; a Superliga argentina, o oitavo.

“Nós avaliamos os principais times argentinos como ligeiramente melhores que os brasileiros, mas existe número maior de talentos no topo do futebol brasileiro”, disse Omar Chaudhuri, o vice-presidente de informações da 21st Club.

Para os recrutadores, isso torna o Brasil um mercado onde é mais fácil trabalhar. “Ligas com uma grande disparidade de qualidade podem tornar o trabalho dos olheiros mais difícil”, disse Chaudhuri. “Se você está assistindo ao Boca Juniors, por exemplo, jogando contra um adversário fraco, pode ser difícil avaliar o quanto foi impressionante um desempenho individual."

Esse problema se agravou em 2015 quando a Superliga argentina cresceu para 30 clubes. Ainda que esse número agora tenha sido reduzido a 24, deve voltar a subir em resposta ao impacto financeiro da pandemia do coronavírus.

“É impossível que o nível não caia”, disse Huerta sobre uma liga com 30 times. “Quando os clubes assistem aos jogos daqui, há oito ou 10 clubes que merecem ser assistidos, e além deles o nível é realmente baixo”.

Isso é típico da maneira pela qual a situação é enquadrada na Argentina, como um problema que ao menos em parte é reponsabilidade do país mesmo. Huerta aponta para uma variedade de fatores —indo de questões econômicas mais amplas que forçam os clubes a reduzir seus orçamentos de desenvolvimento à perda de Tocalli e de seu mentor, e antecessor, José Pékerman, pelas divisões de base nacionais argentinas. Tocalli lamenta a falta de planejamento dos times da Superliga.

Ao mesmo tempo, a Europa industrializou o seu desenvolvimento de juvenis. “No passado, tínhamos os jogadores alemães, altamente técnicos, os jogadores ingleses, os jogadores espanhóis, nesse nível”, disse Huerta.

O futebol europeu costumava se voltar à Argentina —e ao Brasil— em busca da mágica que lhe faltava. Agora, disse Huerta, os clubes europeus tendem a buscar jogadores “combativos” na América do Sul. Talentos? Eles cultivam os próprios.

Ele espera que a queda nas exportações argentinas seja apenas uma fase do ciclo, uma lacuna natural antes que comecem a surgir jogadores novamente. “Há algumas gerações realmente interessantes aqui, jogadores de 15, 16 e 17 anos”, disse Huerta.

Tocalli está certo, nesse sentido: a Argentina jamais deixou de produzir jogadores. A diferença é que hoje em dia a Europa já não precisa tanto deles.

Tradução de Paulo Migliacci

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