Futebol francês é abalado por acusações de assédio, sexismo e bullying

Anos dourados em campo mascaram descontentamento com ambiente tóxico na federação

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Tariq Panja Romain Molina
The New York Times

Vista de fora, a Federação Francesa de Futebol há dois anos representa o padrão ouro de seu esporte: campeã da Copa do Mundo masculina na Rússia em 2018 e organizadora da Copa do Mundo feminina mais bem sucedida da história, um ano mais tarde.

Mas dentro da federação, dizem atuais e antigos dirigentes, essa aura dourada serviu para mascarar pelo menos dois anos de grave descontentamento, o que inclui acusações de comportamento inapropriado de dirigentes com relação a empregadas da organização, queixas de bullying contra a diretora-geral da federação e reclamações sobre uma cultura tóxica, na qual os homens usam linguagem sexista direta rotineiramente e fazem declarações sugestivas a mulheres que trabalham com eles.

As coisas se tornaram tão graves dentro da sede da federação em Paris, de fato, que Noël Le Graët, presidente da organização há muito tempo, trouxe um especialista externo treinado em reparar empresas danificadas, a fim de orientar sua equipe sobre como acabar com o tumulto.

Noël Le Graët, presidente da Federação Francesa de Futebol, concede entrevista em Paris
Noël Le Graët, presidente da Federação Francesa de Futebol, concede entrevista em Paris - Franck Fife - 10.set.20/AFP

“Já há alguns meses venho sendo informado de disfunções e relações de trabalho tensas dentro da equipe de liderança”, escreveu Le Graët no mês passado em um email a membros seniores da federação do qual o The New York Times obteve uma cópia. “Não quero que essa situação se arraste. Está causando problemas em nossa organização e prejudicando as condições de trabalho adequadas a todos nós.”

A discórdia representa uma séria ameaça à missão da organização, disseram diversos dirigentes da federação, não só por causa das questões de trabalho mas também porque uma perda de dirigentes poderia, com o tempo, afetar o desempenho das equipes francesas, que estão entre as melhores do mundo.

A seleção feminina da França está lidando com uma revolta interna, com diversas das principais jogadoras em conflito com a treinadora, e uma delas anunciando que não defenderá mais a equipe até que sua saída do comando do time.

Em entrevistas fora de campo, mais de meia dúzia de atuais e antigos empregados da federação de futebol descreveram ao The New York Times um ambiente de trabalho no qual linguagem inapropriada, abusos psicológicos e estresse eram comuns, no qual o álcool alimenta comportamento impróprio em eventos internos, o que inclui pelo menos um incidente em que homens da equipe da federação entraram no quarto de uma colega mulher sem a permissão dela.

A Fédération Française de Football (FFF) emprega cerca de 300 pessoas, em dois locais principais: a sede em Paris e o centro nacional de treinamento localizado em Clairefontaine-en-Yvelines, cerca de 55 quilômetros a sudoeste da cidade.

Com orçamento anual de cerca de US$ 300 milhões (R$ 1,68 bilhão), ela comanda todo o futebol profissional e amador na França, congregando mais de 2,1 milhões de amadores associados e cerca de 1.500 profissionais. A federação também dirige um dos melhores sistemas de desenvolvimento de talentos do planeta, em 25 locais espalhados pelo país, entre os quais oito especificamente para mulheres.

Para Le Graët, dizem algumas pessoas informadas, o foco vem sendo reparar o relacionamento deteriorado entre os membros de sua equipe de gestão. Em setembro, mais de um ano depois de receber queixas sobre o estilo de liderança de Florence Hardouin, a diretora-geral da federação, ele enviou um email aos diretores da organização anunciando que havia convocado um especialista em práticas de trabalho, Eric Moliere, cuja empresa, a Plein Sens, se especializa em reparar organizações danificadas.

Le Graët, que é parte do conselho dirigente da Fifa, a organização que comanda o futebol mundial, prometeu agir quanto às constatações do relatório que está sendo compilado por Moliere. Mas apesar de ter recebido há mais de um ano uma carta assinada por mais de uma dúzia de executivos importantes da organização, Le Graët tomou poucas medidas substantivas para corrigir os problemas, disseram os atuais e antigos funcionários entrevistados.

Em uma reunião em 2019, de acordo com alguns participantes, Le Graët simplesmente implorou aos membros da equipe que trabalhassem melhor juntos. Hardouin, de acordo com pessoas envolvidas, ouviu as queixas e apresentou algumas críticas de sua parte, mas também prometeu se esforçar para melhorar a situação.

No terceiro trimestre deste ano, o ambiente se deteriorou ainda mais, disseram empregados, com novas queixas encaminhadas a Le Graët. Em uma dessas, vista pelo The New York Times, um executivo dizia que sua saúde mental havia se deteriorado a tal ponto que ele já não era capaz de realizar seu trabalho. Outros dirigentes fizeram afirmações semelhantes de assédio psicológico contra colegas.

A despeito dos problemas, Le Graët insistiu em que as coisas não eram tão ruins quanto alguns de seus subordinados afirmam.

“Não existe uma ‘guerra civil’ na FFF [Federação Francesa de Futebol]”, disse em respostas via email a perguntas que lhe foram encaminhadas por intermédio do porta-voz da federação. “Isso é errado, absurdo e ‘fake news’”. Hardouin, como os demais dirigentes, conta com seu pleno apoio, acrescentou o presidente.

Para Hardouin, uma das poucas mulheres que ocupam cargos importantes no futebol mundial, as escaramuças foram mais pessoais. Em respostas via email, ela disse estar ciente das queixas que chegam com cada vez mais frequência ao escritório de Le Graët, que a promoveu de sua posição como diretora de marketing para o principal posto executivo da federação em 2012.

Mas Hardouin disse que não se sentia atacada pessoalmente pelas acusações e deu a entender que era saudável para a organização trabalhar com especialistas externos a fim de resolver seus problemas.

“Tudo isso nos permite melhorar, avançar e nos aperfeiçoar”, afirmou.

Moliere, o consultor sobre relações de trabalho, passou horas conversando com os dirigentes, fazendo perguntas relevantes, de acordo com algumas das pessoas entrevistadas.

Segundo empregados da federação, parte do problema –e talvez uma das causas da disputa interna– é uma estrutura administrativa inchada, na qual 17 diretores lutam constantemente por papéis importantes.

A política interna da organização pode estar esquentando ainda mais porque Le Graët, 78, deve buscar reeleição em março. Mas as questões, disseram diversos dos entrevistados, também são um reflexo de uma cultura que em alguns casos fechou os olhos a comportamentos que certos empregados, especialmente os mais jovens, disseram lhes causar desconforto.

Meses após a Copa do Mundo de 2018, por exemplo, a federação advertiu o diretor de finanças Marc Varin sobre sua conduta, depois que uma funcionária apresentou uma queixa acusando-o de comportamento impróprio com relação a ela durante uma festa em Moscou.

Uma investigação policial e uma interna da FFF inocentaram Varin de assédio sexual, mas ele foi mais tarde advertido por conta da linguagem que usou com colegas, homens e mulheres –e sobre seu consumo de álcool– em uma festa de Natal da federação naquele ano, explicou a entidade.

Outro episódio que frustrou algumas das mulheres da equipe aconteceu anos antes, quando, depois de uma noite regada a álcool em um retiro para administradores em Clairefontaine, pelo menos dois executivos homens, brandindo uma garrafa de champanhe, invadiram o quarto de uma colega mulher sem convite. A federação disse não ter recebido queixas sobre o incidente, que foi descrito por três pessoas que estavam presentes naquela noite.

Funcionárias da federação falaram ao The New York Times sobre o uso casual de linguagem sexualmente sugestiva pelos homens que trabalham na federação e sobre terem sido sujeitadas a comentários sexistas com relação à sua aparência.

A federação negou que existam problemas nesse sentido e informou que 45% de seus empregados são mulheres.

Mas a crescente preocupação sobre a conduta do pessoal da federação levou a acusações, depois do incidente durante a Copa do Mundo da Rússia. Agora, os empregados da federação estão proibidos de consumir álcool em festas realizadas em imóveis da entidade, e um programa compulsório de treinamento contra assédio foi introduzido para o pessoal da federação no início de 2020.

Esse foi paralisado pelo surto do coronavírus, no entanto; cerca de metade dos dirigentes seniores da federação ainda não passaram por treinamento.

Tradução de Paulo Migliacci

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