Na saída da estação de trem de Stevenage, na Inglaterra, há uma foto em preto e branco de Lewis Hamilton. E só. É a única homenagem a ele em sua cidade natal.
Mencionar o nome do hexacampeão (ele pode confirmar o hepta no domingo) da F-1 por lá gera um misto de orgulho e desconfiança. Quase imbatível nas pistas, o piloto nunca foi unanimidade para os britânicos. Nos tablóides, já recebeu críticas pela forma como se veste, por ter trocado o Reino Unido por Mônaco e até foi acusado de deixar o próprio sotaque mais “americanizado”.
Por que para um dos maiores pilotos de todos os tempos é difícil ser reconhecido justamente onde nasceu?
Visitada pela reportagem da Folha no fim de outubro, Stevenage fica a 50 quilômetros de Londres e a 80 do circuito de Silverstone. A população, hoje com cerca de 88 mil habitantes, cresceu com a chegada das ferrovias no século 19 e no pós-Segunda Guerra Mundial, quando recebeu famílias cujas casas tinham sido destruídas por bombardeios na capital inglesa.
Cercada por rodovias e avenidas, não tem o charme nem o prestígio de outras cidades no entorno de Londres. A maioria da população é branca (88%) e de classe média. Apenas 3,4% são negros.
Foi lá que Hamilton estudou e morou quando começou no kart e entrou para o programa de desenvolvimento da equipe McLaren, aos 13 anos de idade.
Georgia Barrow, repórter do jornal local, acredita que a opinião de alguns moradores sobre Hamilton mudou com o passar do tempo.
“Quando ele estreou na Fórmula 1, havia faixas e cartazes de apoio em lojas e postos de gasolina da cidade. Agora, trabalhando no jornal local, recebemos muitas mensagens contra e a favor quando publicamos uma história sobre ele,” afirma.
“Muita gente na cidade ainda o ama. Por outro lado, alguns dizem que ele ficou arrogante e que questiona as próprias origens. Pensam: por que eu deveria ter orgulho dele, se ele não tem orgulho de onde vem? E o episódio do prêmio não caiu bem", completa.
Ela se refere à premiação anual da BBC de Personalidade Esportiva do Ano. Hamilton foi finalista em 2018 e, ao subir no palco para fazer um discurso, disse: “foi um sonho para nossa família fazer algo diferente, sair das favelas”. No dia seguinte, pediu desculpas publicamente e afirmou que fez a escolha errada de palavras, mas recebeu críticas nas redes sociais acompanhadas da hashtag #orgulhodeStevenage.
No bairro onde viveu quando criança, as casas não têm muros nem grades. A antiga residência da família tem três quartos, dois andares e um pequeno jardim. A atual moradora, Tia Brown, 22, não guarda mágoas do ocorrido. “Não me senti ofendida. Ele é uma das pessoas mais famosas do mundo e acaba sendo mais cobrado por isso."
Ela lembra que já recebeu visitas de Hamilton. “Ele voltou algumas vezes ao longo dos anos. A última vez faz meses. Bateu na porta de surpresa e perguntou se podia entrar. Foi simpático, é uma pessoa normal, queria ver a casa e relembrar do passado. Pareceu ser uma pessoa tímida. Não era muito extrovertido”, diz.
A escola onde o piloto estudou entre os 4 e os 11 anos de idade fica na rua ao lado. Hamilton também já visitou o local e uma foto autografada do piloto na recepção é uma das lembranças do ex-aluno famoso, na época considerado quieto e focado no kart.
“Ele é uma inspiração para as crianças. Veio de uma família trabalhadora, se dedicou muito e conseguiu feitos grandiosos. Queremos que as crianças daqui vejam que podem chegar longe também. Temos muito orgulho dele ter estudado nessa escola,” diz a diretora Teresa Skeggs, que acredita que alguns confundem o comportamento discreto de Hamilton com falta de carinho pela cidade.
“Talvez ele fosse mais querido se fizesse mais aparições públicas em Stevenage. Acho que as pessoas gostariam de vê-lo mais por aqui."
Há quem aponte outra possível explicação. A dois quilômetros da escola fica o Stevenage FC. O clube está na quarta divisão do futebol inglês, mas tem estádio próprio e antes da pandemia recebia, em média, 3.000 espectadores por partida.
“Se as pessoas tiverem que escolher entre uma corrida de Fórmula 1 e um jogo de futebol, a maioria assiste ao futebol. É o esporte número um do país apesar de, claro, existirem muitos fãs do Lewis Hamilton em Stevenage. Outro fator é que hoje em dia a Fórmula 1 saiu da televisão aberta e está na TV a cabo. Talvez isso tenha feito algumas pessoas perderem o interesse”, afirma Daniel Branowsky, diretor de marketing do clube.
Na Prefeitura de Stevenage, também há fotos do piloto penduradas na parede. A presidente do Conselho Municipal da cidade, Sharon Taylor, o conhece e defende.
“A maioria dos pilotos de Fórmula 1 teve uma criação privilegiada. Ele teve origens humildes e chegou onde está com dedicação e talento. Temos um hábito terrível nesse país de não celebrar o sucesso alheio. Alguns reclamam que Hamilton se mudou da Inglaterra, não paga impostos aqui. Prefiro comemorar o sucesso dele e o que ele traz de positivo para a cidade", diz.
Para ela, as pessoas não entendem o tipo de pressão que ele sofre. "Viaja boa parte do ano, tem um calendário intenso. Elas não veem muito do que ele faz porque ele não o faz publicamente. Claro que adoraria que ele viesse mais a Stevenage, mas entendo completamente que isso não é possível."
Taylor vai mais longe e acredita que Hamilton é vítima de racismo no Reino Unido. “Qualquer outra pessoa que se tornou o atleta mais bem-sucedido de todos os tempos na Fórmula 1, se fosse branca, não seria reconhecida nesse país pelo que fez? Ele é um gênio. Qual a diferença entre ele e outros atletas que não fizeram nada parecido e têm esse reconhecimento? A cor da pele."
Hamilton pode ser considerado tímido por alguns que o conheceram, mas não tem medo de falar sobre o que acredita. Defende ativamente causas como o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e questões ambientais.
“Lewis sofreu discriminação quando era mais jovem e quer usar a própria voz para mostrar que isso não é certo. Sinto muito orgulho por ele fazer isso. Usar a fama para um bom propósito é algo incrível”, afirma Taylor.
Neste ano, Hamilton deu mais um passo para tentar diminuir a desigualdade na F-1. Criou uma comissão em parceria com a Royal Academy of Engineering, sociedade científica britânica ligada à área de engenharia, com o objetivo de aumentar a participação de negros no esporte a motor.
Aos 35 anos de idade, ele segue batendo recordes nas pistas e, fora delas, defendendo o que considera relevante. Gostem os britânicos ou não.
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