Morreu o último grande ídolo popular argentino do século 20, Diego Armando Maradona, o rei do futebol que associou seu nome ao de seu país em todos os rincões do planeta: uma “marca registrada” da Argentina.
Foi a “crônica de uma morte anunciada” –mas não por isso menos imprevista–, já que há muito tempo ele vivia no limite entre a vida a morte, por seu vício em drogas, álcool e medicamentos, distante dos tempos de esportista nos quais deslumbrou multidões nos estádios e campeonatos, de sua origem pobre e plebeia à consagração internacional com todas as honrarias e reconhecimentos.
Depois de conquistar o título mundial juvenil em 1979, aos 19 anos, com a seleção argentina, e triunfar dois anos depois no Boca Juniors, ele iniciou um périplo europeu que o conduziu ao Barcelona (1982-1984), ao Napoli (1984-1991) e ao Sevilla (1992-1993).
De volta à Argentina, Maradona jogou no Newell's Old Boys e no Boca Juniors antes de se aposentar, em 1997.
Com a seleção argentina, participou de quatro Mundiais e conquistou o título da Copa do Mundo do México, em 1986, um torneio no qual sua atuação foi inesquecível.
Foi então que aconteceu sua partida contra a Inglaterra, talvez a mais recordada de sua carreira, pelos dois gols que deram a vitória aos argentinos (entraram para a história como “o gol do século” e “a mão de Deus”) e pelas implicações extracampo da partida, acontecida apenas quatro anos depois da Guerra das Malvinas (1982), quando as feridas ainda estavam abertas.
Em numerosas ocasiões, esse foi o papel de Maradona: o de artífice de uma recuperação do orgulho nacional.
O genial jogador de futebol e menino de bairro que ganhou fortunas se tornou referencial para muitas outras questões, um ícone do “mundo do futebol”, com toda a parafernália que se move ao seu redor e a celebridade da “tela quente”; do espetáculo do qual parece ser possível representar e explicar a realidade em todas as suas expressões.
Superlativo, inigualável, pícaro e irreverente, polêmico, controvertido, caprichoso, desmesurado, continuou a participar da cena pública depois de se aposentar dos gramados. Como diretor de futebol e treinador, como comentarista ou estrela de televisão. Como ator de sua própria história, com suas bebedeiras e infidelidades, amores e desafetos.
Dessa última etapa será recordada sua adesão às esquerdas populistas latino-americanas representadas por Hugo Chávez e Lula, e sua simpatia por Néstor e Christina Kirchner.
O homem que encarnou o personagem e o carregou nas costas enquanto pôde disse “basta” no dia 25 de novembro, aos 60 anos. Uma catarse coletiva de tristeza e desconsolo foi gerada por sua despedida. Catarse, desconsolo e revelação.
Porque ao desaparecer o Maradona terreno, de carne e osso, se revela e ganha voo próprio o Maradona mito e lenda; nacional e universal, transversal e multiclassista, que transpõe as divisões e unifica as camisas.
Agora existe um Maradona para cada pessoa. Onde colocar as melhores recordações de nossas vidas, os sonhos e alegrias. E as esperanças e promessas de “redenção”.
Do futebol à política, e das mais remotas aldeias às grandes cidades da aldeia global, representa-se em sua figura –em seu surgimento, ascensão, apogeu e declínio– o destino heroico –e ao mesmo tempo trágico– dos gladiadores. Os lutadores que representavam as grandes batalhas na arena do circo romano e também entretinham o público e ofereciam um modelo aos espectadores; ao combater e morrer com dignidade, eram capazes de inspirar admiração e reconhecimento popular.
“O Gladiador”, com Russell Crowe, filme que chegou aos 20 anos neste 2020 neomedieval, é um autêntico guerreiro convertido em escravo, que se liberta do jugo a que foi submetido ofertando sua vida.
“Fazia-nos sentir que era o gladiador argentino diante do mundo. Encheu-nos de alegrias, era assim que atuava. Foi um homem que deu a nós, como povo, imensas satisfações “, disse sobre Maradona o presidente argentino Alberto Fernández.
O jornal The New York Times resumiu a notícia de sua morte em quatro linhas: “O argentino que se converteu em um dos grandes jogadores de futebol morreu aos 60 anos. Sua lenda foi maculada por seus vícios e excessos”. O cientista político e assessor presidencial Marcelo Leiras respondeu em um tuite: “O que significa que eles nada entendem”: a lenda não foi maculada, e resiste às suas manchas e opacidades.
Resiste a elas, mas às vezes também as encobre ou até as justifica. É esse o drama argentino; é o que se vê no espelho de argentinidade que Diego Maradona encarnou: a história real com todos os seus “chiaroscuros”, os mitos populares e as lendas e narrativas que construímos sobre ele. Todos registros igualmente válidos e representativos de nossa cultura.
O problema é quando se confundem realidades e ficções, defeitos e atributos, façanhas e frustrações.
Maradona agora descansa em paz. Pôde ter seu repouso final na intimidade do âmbito familiar do qual a fama há muito o havia privado, e que ele não chegou a recuperar e desfrutar em vida.
Enquanto isso, lá fora, a Argentina toda chora e o mundo recorda seus momentos de glória.
Ele não pôde ter o grande e pacífico funeral que o governo improvisou na Casa Rosada, tentando emular o de Néstor Kirchner dez anos atrás.
Tudo terminou dolorosamente, perturbado por distúrbios, protestos, gás lacrimogênio e duras cruzes políticas que trouxeram de volta essa outra imagem de que Maradona foi vítima: excepcional talento individual e incompreensíveis desarranjos coletivos.
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Tradução de Paulo Migliacci
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