Descrição de chapéu Maradona (1960-2020)

Villa Fiorito viu Maradona nascer, cair em fezes e começar a ser um gênio

Bairro pobre do município de Lomas de Zamora virou local de peregrinação após morte

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Buenos Aires

A presença de jornalistas todos os dias incita garotos a tentarem fazer malabarismos com a bola próximos ao número 523 da Azamor. A rua de casas modestas e gente operária virou o centro da Argentina.

É o endereço onde cresceu Diego Armando Maradona em Villa Fiorito, bairro do município de Lomas de Zamora, na província de Buenos Aires.

As crianças fazem aquilo para talvez despertarem a atenção e serem descobertas como craques do futuro. Como um dia aconteceu com Maradona, que morreu na última quarta-feira (25).

"Diego colocou Fiorito no mapa, mas a vila que ele conheceu e viveu é bem diferente dessa que existe hoje. Não sei se a reconheceria", afirma Gloria Cristaldo, que afirma ser amiga da família do ex-morador mais famoso da região.

A casa em que o craque viveu está vazia, e ninguém sabe dizer ao certo quem é o proprietário. Ela foi erguida por don Diego, pai de Maradona, ao se mudar para o local em 1955 com dona Tota, mãe do jogador. Os dois morreram nesta década.

O camisa 10 se referia à residência como um espaço de telhas e chão batido. Não havia banheiro, e a construção precária não impedia a água da chuva de entrar.

Quando o garoto começou a jogar no Argentinos Juniors, o advogado Jorge Cyterszpiler, que depois virou seu empresário, o deixava passar os finais de semana em um apartamento na capital. Porque se chovesse, ele não conseguiria deixar Villa Fiorito.

Altar criado por fãs em frente a casa onde Maradona viveu sua infância
Altar criado por fãs em frente a casa onde Maradona viveu sua infância - Ricardo Moraes/Reuters

Hoje em dia, segundos os locais, é possível entrar e sair do bairro, a não ser que uma chuva torrencial faça o rio Riachuelo, que corre próximo, transbordar. De acordo com os moradores, um dos passatempos das crianças no passado, inclusive do pequeno Maradona, era caçar sapos quando a água transformava as ruas, especialmente as de terra, quase em pântanos.

O campo onde ele jogava todos os dias não existe mais. Deu lugar a uma fileira de casas. O Estrella, equipe amadora que o teve como camisa 10, continua na ativa. O mesmo não pode ser dito de Los Cebollitas, time infantil que o fez ser descoberto pelo Argentinos Juniors.

"Don Diego [o pai] quase não estava em casa naquele tempo. Ele trabalhava no porto, na indústria de carne ou em qualquer lugar onde houvesse emprego. Era uma vida muito difícil. Não apenas a dele, a de todo mundo aqui. Muitas vezes as crianças não tinham comida todos os dias da semana", relata Francisco Pérez, 88, conhecido como Gordo Pancho, um dos moradores mais antigos da região.

Quando a notícia da morte de Maradona chegou à Fiorito, moradores locais se aglomeraram em frente à casa onde a família viveu. O endereço se transformou em local de peregrinação de fãs, que chegam para depositar flores, deixar um cartaz ou apenas ver onde foi vivida a infância do campeão mundial de 1986.

Crianças jogam futebol em um campinho improvisado da Villa Fiorito
Crianças jogam futebol em um campinho improvisado da Villa Fiorito - Ricardo Moraes/Reuters

Algumas pessoas do bairro tomaram a iniciativa de pintar o rosto de Maradona na parede principal.

Ele disse certa vez que, quando se lembrava da Villa Fiorito, a primeira palavra que lhe vinha à cabeça era "luta". Foi também onde iniciou adoração que sentiu a vida inteira por dona Tota, morta em 2011. A criança logo percebeu que, se comia todas as noites, era porque a mãe ia para a cama de barriga vazia.

"Você se lembra quando ele era técnico da Argentina e disse que era branco ou negro e jamais seria cinza? Isso ele aprendeu em Fiorito. Aqui não existe meio termo. Você deve ter a coragem de escolher um lado", diz Armando Menendez, 60, que relatou ter encontrado o pai de Maradona muitas vezes e ter ficado amigo dele.

"Don Diego era um churrasqueiro maravilhoso", completa. Tanto assim que se tornou responsável pelos assados na concentração argentina, em dias de folga durante a Copa do México, em 1986.

Menendez aponta para a casa e diz que nos fundos havia uma fosso, onde "Diego caiu na merda e quase morreu". É referência a uma das histórias mais conhecidas a compor a mitologia de Maradona. Não se sabe ao certo a idade, mas quando criança, ele caiu em um buraco cheio de excrementos humanos e quase se afogou. Foi salvo pelo tio Cirilo, irmão de Tota, que o puxou com as mãos do meio das fezes.

O relato ficou famoso porque se transformou em uma espécie de metáfora da vida do menino que tinha tudo para ser mais um adolescente sem rumo da Villa Fiorito. Em vez disso, transformou-se em um dos maiores jogadores da história. Para seus compatriotas, o maior.

Ninguém sabe dizer com precisão a última vez que o filho ilustre esteve em Fiorito. "Foi para gravar um programa de TV", arrisca Gloria Cristaldo. Era um filme, na verdade. Ele esteve no bairro com o diretor sérvio Emir Kusturica, que dirigiu o documentário "Maradona", lançado em 2008.

"Neste ano, o advogado dele esteve aqui e trouxe mantimentos e remédios no início da pandemia. Foi um jeito dele dizer que mesmo distante continuava preocupado com os seus", elogia Walter Salguero, delegado municipal de Villa Fiorito, referindo-se a Matías Morla, que era o faz-tudo de Diego até sua morte.

A história da casa após a saída dos Maradonas não é precisa. Moradores mais antigos dizem que dona Tota a deixou para uma amiga chamada Maria. Alguns anos depois, ela teria abandonado o marido e ido embora. O homem permanecera no endereço mais alguns anos, mas depois partiu.

O destino da residência pode ser mais concreto. O deputado Daniel Lipovetzky, do PRO (Proposta Republicana), apresentou projeto no Congresso Nacional para que o imóvel seja desapropriado pelo Estado. Poderá ser transformado, então, em um centro de lazer e convivência para os moradores de Fiorito.

Diego Maradona, don Diego, dona Tota e seus irmãos deixaram o bairro em 1976. Eduardo Dosisto, chefe da comissão de futebol do Argentinos Juniors, havia alugado uma casa na rua Argerich 2750, no bairro Villa del Parque, para a família morar. Aos 16 anos, era a primeira vez que o futuro jogador residia em um lugar com banheiro.

Foi quando também passou a ter responsabilidade de sustentar toda a família, e a fama de menino prodígio chegou.

"Nunca quis ser mais do que o garoto da Villa Fiorito", ele disse, quando já havia sido campeão do mundo.

A saída do bairro onde nasceu pode ter marcado também o início da diferenciação entre Diego e Maradona. Fernando Signorini, seu preparador físico pessoal por mais de dez anos, pensa assim.

"Eu disse a ele que, com Diego, iria até o fim do mundo. Mas com Maradona, não daria um passo."

A resposta do camisa 10 foi com apenas uma frase. "Se não fosse por Maradona, ainda estaria na Villa Fiorito."

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