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'Desconstruindo Diego Maradona'

O que melhor explica a criação desse novo mito universal é que o futebol é o último grande reduto do patriarcado

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Francisco Sánchez

Cientista político e diretor do Instituto Ibero-Americano da Universidade de Salamanca. Professor de ciências políticas, especializado em política comparativa na América Latina. Doutor em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Salamanca.

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O futebol é um fenômeno global de tal magnitude que transcende as diferenças culturais como nenhum outro.

Sua geopolítica pode ser simplificada afirmando que a América Latina, aqui também, fornece matéria-prima para clubes europeus pagos pelos chineses que possuem os direitos televisivos e petrodólares de xeques que compram equipes por hobby.

Mas, ao contrário das commodities, no futebol há vingança quando Messi, Maradona ou Ronaldinho deixam os seus clubes para participar dos seus times nacionais, do seu povo. Viva a soberania!

A relação entre um "jogador de futebol" –a palavra aficionado aqui fica aquém–, o jogo e seus jogadores transcende o lúdico e o racional para se enraizar em algo mais profundo, quase atávico, o que explica as reações à morte de Maradona.

Agora, como é que pessoas infalíveis no julgamento da obra pela conduta do autor caíram em histeria coletiva? Gente que, por exemplo, nunca mais viu os filmes de Woody Allen por causa das denúncias de sua filha, apesar de lembrar-se do plano geral de Manhattan em preto e branco cada vez que ouve Rhapsody in Blue.

Ou colegas da universidade que se juntaram à "resistência", como uma "torcida organizada" enquanto se recusam a participar, com boa razão, de eventos não paritários. Parece que neste 25 de novembro eles deixaram de lado a comemoração do dia internacional da eliminação da violência de gênero.

Entretanto, e esse é o meu ponto, essas aparentes inconsistências não deveriam nos surpreender, pois são a evidência de que Maradona deixou de ser um grande jogador de futebol e uma pessoa com luzes e sombras para se tornar um mito.

Como tal, ele é atribuído com qualidades que não possui para construir socialmente uma narrativa maravilhosa, fora do tempo histórico, na qual a realidade e a ficção se misturam.

É por isso que seus devotos não o julgam por sua conduta, assim como Zeus não foi julgado por ser incestuoso comedor de crianças.

E não apenas isso. Assim como as ações dos seres mitológicos se tornam épicas e encontram sua lírica, por mais irregulares que sejam, o gol não regulamentado de 1986 foi divino, e parte da vingança por uma guerra perdida.

Enquanto isso, outro gol marcado pela mão do mortal Henry, que classificou a França para a Copa do Mundo, terminou em um pedido de desculpas do jogador e do presidente da República.

Por que foi mitificado?

Ser um grande jogador de futebol pode ser uma condição necessária, mas não suficiente, mesmo quando sua memória foi reforçada com uma seleção de bons momentos no YouTube capaz de alimentar essa narrativa épica que permeou até mesmo entre os menores de 30 anos, os ausentes forçados do México-86 e os espectadores improváveis de EUA-94, sua última Copa do Mundo, a do doping, e o prelúdio para sua aposentadoria três anos depois.

Também parece insuficiente aquilo de que, na realidade, ele nunca saiu de Villa Fiorito e nunca se esqueceu dos seus –o povo. Para os devotos não argentinos isso não diz muito e poderia parecer-lhes uma visão muito conservadora, na qual o talento não evita a condenação de permanecer em baixa ou de cair na desgraça.

Uma grande contribuição vem da lenda do rebelde –do ressabiado– que habilmente se reconverteu ao compromisso político graças a suas desintoxicações em Cuba, aproximando-se do Olimpo da rebeldia presidido por Castro, Chávez e Che. Como as lendas não são julgadas, ninguém viu inconsistências políticas em seu serviço às ditaduras misóginas do Golfo.

Mas, na minha opinião, o que melhor explica a criação desse novo mito universal é que o futebol é o último grande reduto do patriarcado, que é uma coisa de homens e mulheres.

No jogo e em suas festividades, os homens podem, sem serem julgados, dizer que amam outro homem, abraçar-se, chorar, mostrar sensibilidade, bem como ser corajosos, e também alimentar o gregarismo da tribo.

O resumo perfeito dessa mistura de sentimentos é Simeone agradecendo às mães de seus jogadores porque "elas os fizeram nascer com ovos tão grandes".

Maradona foi um dos melhores em um esporte que significa essas e muitas outras coisas, e por isso ele tem uma admiração devota.

A diferença com outros bons jogadores é que ele sabia como transmitir emoções para os seus seguidores dentro e fora do campo, em todos os níveis, ajudando os homens a liberar sentimentos e manifestar paixões.

Isso aconteceu com o vice-presidente espanhol ateu que rezou por ele um Pai Nosso –a mais patriarcal das orações– no qual o céu era Cuba e Deus Pai, Maradona.

Nem mesmo o líder de um partido com o nome em feminino pôde escapar do patriarcado, embora ele certamente queira, e eventualmente o macho alfa sai, como ele se autodefiniu enquanto fantasiava em chicotear uma senhora até que ela sangre.

Finalmente, e isso é o importante, não esqueçamos de que os mitos sempre tiveram uma função política e, embora pareça que eles pertencem ao povo, quando se trata de legitimar as relações de poder, aparecem os sumos sacerdotes que os reivindicam.

No velório da Casa Rosada, pudemos ver quem eles são.

www.latinoamerica21.com, uma mídia pluralista comprometida com a disseminação de informações críticas e verdadeiras sobre a América Latina.

Tradução de Maria Isabel Santos Lima

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