Na pandemia, times ingleses se mobilizam por seus torcedores vulneráveis

Com telefonemas, festas online, cestas de Natal e iPads, clubes buscam aplacar solidão

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Jack Williams
The New York Times

No começo de março, Roger Balsdon estava com tudo preparado. Ele e a mulher, Gloria, vinham planejando havia meses a jornada de sua casa, em Plymouth, na costa sul da Inglaterra, a Southampton, onde embarcariam em um navio de cruzeiro para uma viagem de comemoração de seu 60º aniversário de casamento.

Mas em apenas um piscar de olhos, diz Balsdon agora, seu mundo e o mundo mais amplo ao seu redor escureceram.

Enquanto o coronavírus se espalhava, os Balsdon, cautelosos diante dos riscos de viajar em meio a uma pandemia, decidiram cancelar o cruzeiro. Poucas semanas mais tarde, Gloria morreu, inesperadamente, aos 76 anos. E poucos dias depois disso, o lockdown imposto para combater a pandemia confinou Roger Balsdon, 80, à sua casa. Ele ficaria lá, sozinho, pelas 12 semanas seguintes.

“Eu desmoronei, para ser honesto”, disse Balsdon. “Não ligava para coisa alguma. A sensação que ele sentia, disse, era a de que “eu não tinha motivo para seguir em frente”.

Mas um dia seu telefone começou a tocar.

Do outro lado da linha estava uma mulher chamada Emma Potter, que se identificou como representante da Argyle Community Trust, uma organização de caridade vinculada ao Plymouth Argyle, o clube local de futebol, do qual Balsdon é torcedor desde menino. Potter disse que o filho de Balsdon havia fornecido as informações de contato dele, e que ela só queria saber se ele estava bem, e se havia alguma coisa que pudesse fazer para ajudá-lo.

“Gosto de imaginar que somos um clube da comunidade”, disse Potter. “Tentamos manter esse espírito, e fazer com que as pessoas saibam disso. Somos mais que um clube de futebol: somos uma grande família."

Praticamente desde o momento em que o coronavírus se abateu sobre o Reino Unido, nove meses atrás, conduzindo ao fechamento dos estádios de futebol e de praticamente tudo mais nas grandes e pequenas cidades do país, os clubes profissionais de futebol da Inglaterra –por compreenderem sua importância para as pessoas que contam com eles como parte de sua rotina semanal e de seu senso de comunidade– buscaram novas maneiras de identificar seus torcedores mais solitários e vulneráveis, e de interagir com eles.

Jogadores do Bristol Rovers, do Portsmouth e do Exeter City entregaram comida nas casas de torcedores e participaram de trabalhos comunitários. Em Bournemouth, Watford e West Brom, eles telefonaram para torcedores vulneráveis a fim de verificar se estes precisavam de alguma coisa.

Houve aulas de culinária, programas de perguntas e respostas via Zoom, aulas de ginástica e festas online. Um clube contratou uma pessoa para um posto que designou como “vice-presidente de solidão”, e, quando a pessoa começou a trabalhar, a encarregou de entrar em contato com todos os torcedores que o clube não tinha conseguido localizar.

Dirigentes e treinadores de clubes prepararam surpresas para as torcidas. Jogadores, atuais e aposentados, visitaram torcedores em casa, sem aviso prévio. Alguns torcedores ganharam iPads de presente para assistir a jogos ou para manterem contato com suas famílias; os presentes chegavam acompanhados de instruções detalhadas de como operar os aparelhos. E ainda outros torcedores receberam em casa seus medicamentos vendidos sob receita, entregues por empregados dos clubes.

E já que a pandemia continua, os esforços comunitários persistem. Neste mês, jogadores do Doncaster Rovers passaram um dia entregando cestas de Natal a dezenas de torcedores que ainda não estão autorizados a sair de casa.

Os jogadores do Doncaster Rovers Tom Anderson e Jon Taylor entregam cesta de Natal a torcedora
Os jogadores do Doncaster Rovers Tom Anderson e Jon Taylor entregam cesta de Natal a torcedora - Elizabeth Dalziel - 8.dez.20/NYT

“Esse é o lado mais brando” do futebol, disse Simon Hallett, o presidente do Plymouth Argyle, que fez dezenas de telefonemas a torcedores que o Argyle Community Trust identificou como vulneráveis ou solitários. “Muitos passaram a sentir que não estavam sozinhos. Mostramos que existe alguém que se preocupa com eles”.

“Isso ajuda, vindo de um clube de futebol, porque o futebol é uma forma de unir as pessoas”, ele acrescentou.

Muito esforços envolveram colaboração entre os clubes de futebol e suas divisões sem fins lucrativos. As fundações ou fundos envolvidos, em muitos casos são registrados como organizações separadas, mas continuam a estar relacionados aos clubes e a ter acesso a suas instalações e recursos (à sede do clube, e a nomes, endereços de email e números de telefone de torcedores).

Em uma era na qual os torcedores parecem confiar mais em seu clube local de futebol do que no governo nacional, esses relacionamentos –e o sentimento de confiança e de responsabilidade para com raízes locais profundas– foram cruciais.

“Nossos clubes de futebol existem há mais tempo que o Serviço Nacional de Saúde britânico”, disse Adrian Bradley, diretor de saúde e bem-estar do English Football League Trust, que supervisiona as organizações de caridade dos times de futebol ingleses nos diversos escalões da estrutura da Liga inglesa. “Eles existem há mais tempo do que muitos hospitais locais. Em diversas comunidades, existem desde a era vitoriana, como parte confiável da comunidade e do tecido da vida social nesses locais."

Joe Lumley, do Doncaster, no carro com kit de produtos
Joe Lumley, do Doncaster, participa de programa de assistência a torcedores vulneráveis - Elizabeth Dalziel - 8.dez.20/NYT

O telefonema inicial de Potter a Balsdon no segundo trimestre foi “um raio de sol”, ele disse, e ao longo das semanas e meses seguintes, ela telefonava ou o visitava duas vezes por semana. Com a ajuda do clube de futebol, o Argyle Community Trust também organizou telefonemas do treinador do time principal, Kevin Nancekivell, com quem Balsdon conversava sobre o desempenho do time.

O esforço –em parte serviço comunitário, em parte esforço de contato em benefício da saúde mental– é emblemático de uma conscientização mais ampla, em todo o Reino Unido, sobre a solidão que aflige boa parte da população.

O problema é especialmente agudo entre os homens adultos e os idosos, dizem especialistas, mas a discussão em torno do assunto cresceu nos últimos anos –ajudada pelos esforços para reduzir o estigma associado às discussões sobre saúde mental, bem como a uma série de documentários e campanhas televisivas que deram rostos à questão.

A pandemia só amplificou essas ansiedades. Um estudo divulgado em junho pelo Serviço Nacional de Estatísticas britânico apontava que 2,6 milhões de adultos reportavam se sentir solitários “sempre” ou “frequentemente”, e 7,4 milhões de adultos reportaram ter se sentido solitários pelo menos uma vez nos sete dias precedentes.

Para Keith Curle, treinador do Northampton Town, enfrentar a questão envolve recolher números de telefone de torcedores que enfrentavam situações potencialmente vulneráveis no momento em que o lockdown estava começando, e telefonar para dois ou três torcedores a cada dia, até o começo do terceiro trimestre.

“A melhor coisa era que as conversas iam para onde qualquer conversa pode ir, não havia normas”, disse Curle. “Primeiro havia uma apresentação, e depois disso só conversávamos. Às vezes falávamos de golfe. Às vezes sobre o que alguém tinha planejado em casa, ou sobre o trabalho da pessoa. Qualquer coisa que estimulasse o interlocutor a falar e lhe desse alguma normalidade e a percepção de que estamos todos na mesma situação."

Desde março, informou o English Football League Trust, os clubes da liga inglesa e os membros de suas equipes entregaram mais de 643 mil cestas básicas a membros vulneráveis de suas comunidades, assim como 29 mil itens de proteção pessoal e mais de 5,2 mil medicamentos vendidos sob receita.

Quase 250 mil telefonemas de e para membros da comunidade que precisavam de apoio foram realizados pelos clubes que participam do English Football League Trust, e estes também enviaram incontáveis cartas. Os números não incluem o trabalho da Premier League, cujos clubes adotaram iniciativas próprias de combate à solidão.

Em outubro, depois de passar mais de seis meses quase sem sair de casa, Balsdon foi convidado pelo Argyle Community Trust a participar de um café da manhã para torcedores que a organização preparou. Lá, ele papeou sobre todo tipo de assunto relacionado ao Argyle, o time que Balsdon viu jogar pela primeira vez há mais de sete décadas, quando seu lugar à beira do gramado ficava sobre uma cerca alta, onde o pai e o tio colocavam o menino de cinco anos para que ele pudesse enxergar o campo por sobre os milhares de torcedores. “O convite me tirou de casa e me fez pensar de modo diferente sobre o mundo”, disse Balsdon.

Nos termos das regras em vigor atualmente no Reino Unido com relação ao coronavírus, o Plymouth se encontra no escalão 2, o que significa que 2.000 torcedores podem assistir a cada partida do clube em seu estádio, o Home Park. Potter e sua equipe recentemente selecionaram Balsdon como um dos poucos escolhidos, entre os contatos da iniciativa contra a solidão, a receberem um dos cobiçados ingressos para um jogo.

Como detentor de um carnê de ingressos que cobre toda a temporada, Balsdon espera que ele e seu amigo Gordon Bennett, com quem ele fez amizade quando ambos trabalhavam em um estaleiro local, possam retomar em breve sua rotina de assistir aos jogos. Os dois assistem partidas do Argyle no Home Park juntos há mais de 40 anos.

“Há aquele contato social”, disse Balsdon. “Vemos o mesmo jogo, mas jamais vemos a situação do mesmo jeito. Isso rende assunto de conversa a semana toda."

Tradução de Paulo Migliacci

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