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Australian Open, o 'Slam feliz', vira caldeirão da discórdia na pandemia

Quarentena total para dezenas de tenistas gera reclamações e debate sobre privilégios

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Curitiba

O Australian Open passou a vender com sucesso nos últimos anos o conceito de "happy Slam". A estratégia de marketing indica que os tenistas são mais felizes em Melbourne do que quando disputam os outros três eventos do Grand Slam: Roland Garros (Paris), Wimbledon (Londres) e US Open (Nova York).

O apelo da alcunha festiva, que segundo o diretor do torneio, Craig Tiley, foi mencionada pela primeira vez por Roger Federer, tem base na realidade. Neste século, o primeiro Grand Slam da temporada deixou de ser aquele evento disputado em um país muito distante, numa data pouco convidativa, com premiações mais baixas e menos prestígio que seus pares.

O calor brutal do verão australiano permanece, mas amenizado pela infraestrutura que arranca elogios dos tenistas mais exigentes. O complexo de Melbourne é o único de um Slam com três arenas cobertas e desde 2015 lidera o circuito em número de espectadores. A edição de janeiro de 2020 bateu recorde de público, com 812.174 pessoas.

Um "case", pelo menos até a chegada da pandemia da Covid-19. Se no ano passado os australianos tiraram a sorte grande e não tiveram seus planos atrapalhados pelo coronavírus, em 2021 não houve escapatória.

Desde 2020, os planos para a realização do torneio (com início marcado para 8 de fevereiro) foram debatidos à exaustão, num dos países mais rigorosos e efetivos no combate à pandemia —menos de 29 mil casos e 909 mortes até esta quarta-feira (20).

Agora que as ações estão em andamento, a alegria habitual de janeiro deu lugar a um caldeirão de ataques e insatisfações manifestadas por tenistas, organizadores e políticos.

Cerca de 1.200 pessoas, entre atletas, equipes técnicas e outros envolvidos no Slam, chegaram ao país nos últimos dias. Elas passaram por testes de coronavírus e viajaram em 18 voos fretados pela organização do campeonato.

Ao desembarcarem, foram descobertos casos de exames positivos para Covid-19 em passageiros de três voos (o número de infectados já chega a dez, segundo agências de notícias).

Respeitando as regras do país, 72 atletas (além de outras pessoas) que dividiram as aeronaves com os contaminados tiveram que entrar em quarentena total por 14 dias.

Nesse tempo, eles não podem deixar seus quartos de hotel para nada. Os demais têm direito a cinco horas fora da acomodação por dia, entre treinos em quadra, academia e alimentação. Antes do Slam, estão previstos três torneios preparatórios, a partir de 31 de janeiro.

O período de três semanas entre a chegada e o início da principal competição já foi pensado para contornar esses problemas. Ainda assim, está criada uma clara condição de desigualdade, e não tardou para que parte dos quarentenados passasse a demonstrar sua frustração nas redes sociais.

Surgiram vídeos de tenistas praticamente desmontando seus quartos para bater bola, reclamações sobre a qualidade da comida fornecida pelo hotel (foi disponibilizado um voucher para pedidos por aplicativo) e até um rato vagando (duas vezes) pelo quarto da tenista cazaque Yulia Putintseva.

No caso mais pitoresco, a namorada do australiano Bernard Tomic concluiu que a pior parte do isolamento é que se viu obrigada a lavar o próprio cabelo, algo que ela disse nunca fazer.

O espanhol Roberto Bautista Agut, de boa reputação no circuito, surpreendeu ao comparar o período fechado no quarto a estar em uma prisão com wifi —depois se desculpou e afirmou que sua fala numa conversa privada foi tirada de contexto.

Parte da mídia australiana tem reagido com desprezo ao tom dos comentários dos tenistas. Como escreveu o colunista Alexandre Cossenza, do UOL, eles ganharam fama de reclamões mimados por lá.

O líder do ranking, Novak Djokovic, que em junho do ano passado organizou torneios na região dos Bálcãs com pouco apreço às medidas sanitárias recomendadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde) —e contraiu coronavírus durante as disputas—, virou alvo fácil novamente.

O sérvio está em outra bolha de isolamento na Austrália, com menos restrições e mais comodidade, na cidade de Adelaide. O privilégio foi concedido a poucos atletas que estão entre os melhores dos rankings mundiais —pelo menos até agora, esse potencial conflito não teve grande repercussão.

Ainda assim, Djokovic enviou alguns pedidos à organização do Australian Open sobre a condição dos quarentenados. Entre eles estava reduzir o período de isolamento, a partir de novos testes; disponibilizar material para treinamento físico nos quartos; permitir encontros entre atletas e técnico; mover essas pessoas para casas onde pudessem ter acesso a quadras.

"As pessoas são livres para apresentar uma lista de demandas, mas a resposta é não", respondeu o chefe do governo do estado de Victoria, Daniel Andrews.

Como a fama criada na pandemia não ajuda, muitos trataram os pedidos do sérvio como exigências. Diante da repercussão, ele e o diretor do torneio reforçaram nas últimas horas que eram apenas sugestões, e nenhuma voltada especificamente para Djokovic.

Andrews usa palavras duras, mas também sofre ataques no país por permitir a realização do torneio. Seus opositores consideram inaceitável liberar a entrada de mais de mil estrangeiros no território, enquanto habitantes do estado de Victoria (o mais afetado pela pandemia na Austrália) não conseguem retornar às suas casas devido a medidas restritivas interestaduais impostas pelo governo.

Diante das pressões de todos os lados, a organização se mostra disposta a levar seu plano original adiante. Craig Tiley tem descartado a possibilidade de adiar o Slam ou fazer qualquer mudança no formato de disputa. O dirigente sustenta que todos os jogadores sabiam das condições estabelecidas para receber o evento.

“Eles [atletas] perceberam que, se não quisessem fazer isso [quarentena], não haveria Australian Open, eventos de preparação e nenhuma chance de 83 milhões [em dólares australianos, equivalentes a R$ 341 milhões] em prêmios em dinheiro", declarou.

Se a felicidade até o momento parece distante, a chance de uma reconciliação pode vir das palavras da bicampeã do torneio Victoria Azarenka. Uma das 72 em isolamento total, a belarussa escreveu nas redes sociais que a medida realmente estraga todo o trabalho feito na pré-temporada, mas pediu ponderação.

“Ninguém tem um manual claro de como operar com plena capacidade e sem falhas, nós vimos no ano passado. Às vezes as coisas acontecem e temos que aceitar, nos adaptar e seguir em frente. Gostaria de pedir aos meus colegas cooperação, compreensão e empatia pela comunidade local, que tem passado por momentos difíceis, com muitas restrições que não escolheram, mas tiveram que seguir."

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