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O Brasil de Bolsonaro é campeão da Libertadores

Algo sinistro está relacionado à decisão entre Palmeiras e Santos e ao momento atual do Brasil

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Guilherme Simões Reis

Professor da Escola de Ciência Política da Unirio, doutor em Ciência Política pelo Iesp-Uerj e coordenador do Centro de Análise de Instituições, Políticas e Reflexões da América, da África e da Ásia (Caipora)

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Dois times brasileiros jogarão a final da Copa Libertadores da América no Maracanã.

O Palmeiras, maior campeão em torneios nacionais, busca seu segundo triunfo na Libertadores, e o Santos, bicampeão mundial com Pelé, tenta o tetracampeonato da principal competição continental.

Seus torcedores têm motivos para comemorar, com goleadas na semifinal contra os argentinos River Plate e Boca Juniors.

Algo sinistro, entretanto, está relacionado a essa decisão e ao momento atual do Brasil, com o presidente Jair Bolsonaro impondo sua destrutiva agenda em Brasília.

Como parte de sua propaganda, o político apareceu com a camisa de dezenas de clubes brasileiros e é aliado de Rodolfo Landim, presidente do Flamengo, time mais popular do país.

No entanto, Bolsonaro é torcedor do Palmeiras. Até seu nome homenageia o ex-jogador Jair Rosa Pinto.

Campeão brasileiro em 2018, o Palmeiras deixou Bolsonaro erguer o troféu e posar na foto oficial do time. Isso ocorreu pouco depois de ser eleito presidente aquele deputado com 28 anos de carreira, insignificante no Congresso Nacional, dedicado à defesa da ditadura militar e da matança e tortura que ela empreendeu.

No Allianz Parque, em São Paulo, o presidente Jair Bolsonaro, vestido com camisa do Palmeiras, observa o troféu do Campeonato Brasileiro
No Allianz Parque, em São Paulo, o presidente Jair Bolsonaro observa o troféu do Campeonato Brasileiro, vencido pelo Palmeiras em 2018 - Paulo Whitaker - 2.dez.2018/Reuters

Quase 58 milhões de brasileiros consideraram razoável votar em alguém que disse na campanha que a esquerda deveria ser enviada para local de execução de presos políticos do regime militar, ser fuzilada, ir para a cadeia ou para o exílio.

O Brasil teve ainda o azar de a pandemia assolar o mundo com Bolsonaro como presidente. Ele a trata como “gripezinha” sem gravidade e incentiva que a população não use máscara, não altere sua rotina, não faça isolamento social, utilize medicamentos sem eficácia comprovada e não se vacine.

O país já teve mais de 210 mil mortes atribuídas ao coronavírus, fora as vítimas que não fizeram exame.

Um dos principais jogadores do Palmeiras, Felipe Melo, que sempre manifesta apoio a Bolsonaro na internet, participou com ele de eventos oficiais. Ambos sem máscara, com aglomeração de pessoas.

Chamou quem o criticou de “torcedor ferrenho do vírus, que gosta de um mimimi do caramba” (“mimimi” é um termo pejorativo utilizado para desautorizar críticas a posições preconceituosas e politicamente incorretas).

O volante-zagueiro Felipe Melo, do Palmeiras, que é apoiador do presidente Jair Bolsonaro, domina a bola no CT do clube, em São Paulo
O volante-zagueiro Felipe Melo, do Palmeiras, que é apoiador do presidente Jair Bolsonaro, domina a bola no CT do clube, em São Paulo - Cesar Greco

Em ato contra o isolamento social em São Paulo, um grupo de palmeirenses publicou fotos com os dizeres “Deus, pátria, família e amigos. Odiamos gambá”.

A mensagem remete ao lema “Deus, pátria e família” do integralismo, movimento fascista brasileiro forte na década de 1930, que vem se rearticulando. “Gambá” é um apelido pejorativo do Corinthians, rival do Palmeiras cuja torcida se manifestou contra o bolsonarismo.

Torcedores do Palmeiras insatisfeitos com a associação do clube com o presidente lançaram o “Manifesto de palmeirenses que apoiam a democracia e a ciência e que repudiam a mentira e a intolerância”.

Quem assistiu à goleada do Santos contra o Boca Juniors viu o treinador Cuca festejar os gols vestindo camiseta com a imagem de Nossa Senhora.

Sua devoção não o impediu de ser preso por estuprar uma adolescente quando ainda era jogador, no Grêmio.

Ele e três colegas de equipe, Henrique, Fernando e Eduardo, em excursão do time na Europa em 1987, ficaram detidos na Suíça por 28 dias sob acusação de estuprar Sandra Pfaffli, de 13 anos, no hotel em que se hospedavam. Puderam voltar ao Brasil devido a grande lobby da diplomacia brasileira e da Fifa.

Foram condenados em 1989: não encontraram evidências de violência física nos exames de corpo de delito, mas ela era menor de 16 anos. Jamais foram extraditados ou cumpriram pena.

Na época, as antropólogas Carmen Rial e Miriam Pillar Grossi discutiram em artigo no jornal feminista Mulherio a complacência da imprensa de Porto Alegre e da população. Os colunistas culpavam a menina e tratavam a atitude dos estupradores como mera travessura.

A mãe de Fernando, um dos quatro, argumentava que seu filho não tinha culpa, pois não era homossexual e “a garota é que foi lá tirar a roupa na frente deles”.

Ex-jogador do Santos, o atacante Robinho foi condenado a nove anos de prisão pela Justiça italiana por “violência sexual em grupo”.

Ele e amigos embriagaram uma albanesa para que ela não recusasse o ato sexual. Em gravação telefônica interceptada, Robinho ria e dizia que não se importava porque a mulher estava bêbada e nem sabia o que estava acontecendo.

Em outubro de 2020, a diretoria do Santos achou boa a ideia de trazer de volta o ídolo condenado por estupro coletivo. O contrato foi suspenso por exigência de todos os patrocinadores do clube.

A cultura do estupro relativiza a gravidade da violência sexual contra a mulher, atribui a ela a culpa por ser violentada e coloca homens como tendo necessidades naturais e compreensíveis, de modo que são elas, objetos para seu prazer, que deveriam evitar tais situações.

A misoginia não se restringe aos assédios sexuais. Bruno, ex-goleiro de Flamengo e Atlético Mineiro, foi condenado a 22 anos de prisão por seqüestrar, matar e ocultar o cadáver (supostamente esquartejado) da ex-amante Eliza Samudio, que exigia dele o reconhecimento da paternidade do filho.

Quatro clubes já contrataram o jogador feminicida depois da condenação: Montes Claros, Boa Esporte, Poços de Caldas e Rio Branco. Nunca faltaram interessados em seus autógrafos, e outros clubes também tentaram sua contratação, como Operário, Tupi e Fluminense de Feira.

O Brasil que odeia o feminismo, zomba das vítimas de estupro e apoia a hierarquização sexista da sociedade elegeu Bolsonaro.

O então deputado, em palestra no clube Hebraica no Rio de Janeiro em 2017, brincou dizendo sobre seus filhos: “Foram quatro homens. Na quinta, dei uma fraquejada e veio uma mulher”.

Imagine como alguém que se refere assim à própria filha se comporta com outras mulheres. Não precisa imaginar: seguidas vezes disse publicamente à deputada Maria do Rosário, do PT, defensora dos direitos humanos, que não a estuprava porque ela “não merecia”, por ser “muito feia”.

O então deputado federal Jair Bolsonaro confronta verbalmente a colega Maria do Rosário em 2003
O então deputado federal Jair Bolsonaro confronta verbalmente a colega Maria do Rosário em 2003 - Reprodução

Em 2015, foi condenado a pagar indenização a ela e a divulgar um protocolar pedido de desculpas. Nada mais. Pôde, assim, concluir o mandato parlamentar e depois se eleger presidente da República.

No momento mais brutal da ditadura militar, na vigência do Ato Institucional nº 5, a seleção brasileira foi tricampeã mundial em 1970. O triunfo foi usado para propaganda, e Pelé serviu em missões oficiais com passaporte diplomático como divulgador do governo do general Médici.

Agora, Palmeiras e Santos decidem a Copa Libertadores, disputada nas fases decisivas durante a pandemia e sem torcedores nas arquibancadas.

A imprensa brasileira comemora o grande feito esportivo, enquanto Bolsonaro se mantém popular a despeito de promover a destruição da economia, das instituições e dos direitos sociais.

O slogan de 1970 já pode ser gritado pelas bocas não cobertas por máscaras: “Pra frente, Brasil!”

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