Ex-atletas negros acusam NFL de discriminação em acordo sobre concussão

Critérios de base racial são usados para definir elegibilidade para indenização

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Ken Belson
The New York Times

Dois jogadores aposentados da NFL, que apresentaram reivindicações relacionadas à demência nas negociações de um acordo sobre as concussões causadas pela prática do esporte, acusaram a liga de discriminar os jogadores negros e querem um representante próprio no processo de mediação que busca definir o uso de critérios de base racial a fim de definir a elegibilidade para indenização.

Kevin Henry e Najeh Davenport argumentam em um processo que os critérios separados de avaliação –um para atletas negros e outro para atletas brancos– usados a fim de avaliar as reivindicações relacionadas a demência causada pelo esporte– discriminam “de forma explícita e deliberada” centenas ou talvez até milhares de atletas negros. Mas na semana passada, a juíza Anita Brody, do distrito leste da Pensilvânia, descartou o processo judicial que os ex-jogadores propunham e ordenou que um mediador lidasse com as preocupações que ela expressou sobre a prática.

Kevin Henry sentado na entrada de sua casa, em Lawrenceville, no estado americano da Geórgia; por muito tempo, ele atuou na defesa do Pittsburgh Steelers
Kevin Henry sentado na entrada de sua casa, em Lawrenceville, no estado americano da Geórgia; por muito tempo, ele atuou na defesa do Pittsburgh Steelers - Matthew Odom - 22.ago.20/The New York Times

Os ex-jogadores desejam um novo representante porque afirmam que Christopher Seeger, advogado que representa mais de 20 mil ex-jogadores no processo judicial coletivo, estava ciente do abuso que os critérios raciais de avaliação representavam já em 2018, e escolheu não tratar da questão.

“Não é realista esperar que preocupações quanto a normatividade racial sejam tratadas de forma efetiva por partes que não consideram o uso de critérios de normatividade racial como problema”, escreveu o advogado que representa Henry e Davenport, em sua petição.

Os jogadores afirmam que ex-atletas negros podem ter suas reivindicações negadas porque os critérios utilizados para avaliar declínio cognitivo tornam deliberadamente mais difícil para eles receber indenizações em valor de centenas de milhares de dólares, uma acusação que Seeger negou em uma entrevista por telefone ao The New York Times na terça-feira (16).

Seeger declarou estar ciente das objeções aos critérios de normatividade racial que surgiram nos últimos anos. Ele disse que interveio em pelo menos um desses casos e que o jogador envolvido recebeu uma indenização de US$ 1,5 milhão como resultado. No entanto, “não houve uma tentativa sistêmica de tratar os jogadores negros indevidamente, como parte do acordo”, ele afirmou.

Para remover qualquer ambiguidade, Seeger disse que batalharia para remover integralmente a terminologia referente a normas raciais do texto do acordo.

“Preciso que os jogadores acreditem em mim, que eles acreditem no acordo, e preciso que acreditem que estão sendo tratados com justiça”, o advogado afirmou.

Mas restam suspeitas. Como representante dos 20 mil jogadores que participaram do processo, Seeger aceitou o uso dos critérios de avaliação distintos por raça, em 2014, quando o acordo estava por ser aprovado. A NFL e Seeger apontam que o uso das normas raciais não é compulsório, embora Seeger tenha reconhecido que alguns dos médicos encarregados de avaliar os jogadores podem acreditar, indevidamente, que esse é o caso.

O The New York Times estudou os registros confidenciais de oito ex-jogadores negros cujas reivindicações referentes a demência foram negadas. Nos casos, que remontam a 2018, diagnósticos que foram determinados sem referência a raça demonstravam declínio suficiente da capacidade cognitiva para fazer com que os jogadores fossem elegíveis para indenização.

Mas um segundo médico descartou os diagnósticos em questão porque os responsáveis por eles não haviam empregado as normas raciais desenvolvidas pelo médico Robert Heaton, cujo uso se tornou padrão na avaliação de reivindicações apresentadas nos termos do acordo.

“As diretrizes da NFL são muito específicas ao requerer o uso das normas de Heaton em diversos testes”, escreveu o médico que reavaliou os diagnósticos, ao rejeitar a reivindicação de um jogador cuja carreira abarcou as décadas de 1990 e 2000. Para ilustrar o ponto, o médico mencionou os resultados de testes do atleta depois que os critérios raciais foram aplicados nele, para demonstrar que não existia “evidência de declínio cognitivo significativo”.

Advogados que representaram dezenas de jogadores negros afirmam que atletas negros com resultados de teste idênticos aos de jogadores brancos haviam sido desqualificados depois da aplicação de normas raciais, o que representa uma violação de seus direitos civis.

“Diferentemente de muitos casos de direitos civis, o uso da norma racial de Heaton é discriminatório a priori”, escreveu Justin Wyatt, um advogado que representa mais de 100 jogadores, em uma petição apresentada em 2019, depois que o diagnóstico de demência de um de seus clientes foi rejeitado. “Por definição, as normas de base racial criadas por Heaton tem o efeito de tratar atletas negros diferentemente de atletas brancos”.

Não se sabe quantos atletas negros podem ter recebido diagnósticos incorretos ou ter visto rejeição de seus diagnósticos. Cyril Smith, um dos advogados de Henry e Davenport, afirma que a proporção de jogadores brancos que têm suas reivindicações aprovadas é duas ou três maior que a de jogadores negros.

Mas Smith não pôde substanciar sua afirmação porque, segundo ele, Seeger e a NFL não revelaram quaisquer dados sobre a porcentagem de aprovação de reivindicações relativas a demência apresentadas por jogadores brancos e por jogadores negros.

Seeger afirmou esta semana que divulgará dados assim que sua investigação sobre o uso de normas raciais como parte do acordo estiver concluída, dentro de algumas semanas, e que qualquer reivindicação “que tenha sido afetada de maneira indevida pelas normas raciais” será revisada.

Smith e Wyatt afirmam que a única maneira de garantir que os jogadores negros não tenham sido tratados incorretamente é reavaliar cada um de seus exames neuropsicológicos sem levar em consideração as normas raciais. Mais de sete mil ex-jogadores realizaram os exames neuropsicológicos e neurológicos gratuitos oferecidos como parte do acordo. Alguns deles foram informados de que não tinham demência, e talvez não saibam que critérios foram usados para avaliar seus testes.

Não está claro se a NFL aprovará uma reavaliação dos testes de cada jogador, porque as indenizações que poderiam resultar dessa reavaliação atingiriam as centenas de milhares de dólares em cada caso. Mais de US$ 880 milhões em indenizações já foram aprovados, para uma série de doenças cognitivas e neurológicas, e Seeger calcula que o valor total das indenizações venha a superar a marca do US$ 1 bilhão.

A NFL afirmou em comunicado que “não há mérito na acusação de discriminação”, mencionando o uso de ajustes demográficos como prática comum nesse tipo de avaliação. A liga afirmou que o número de jogadores potencialmente afetados pelo uso de normas raciais de avaliação é uma fração do total mencionado, porque, entre outros motivos, “muitas reivindicações foram negadas por motivos que nada têm a ver com as normas, e qualquer reavaliação teria zero impacto sobre esses pedidos negados”.

A liga acrescentou que “mesmo assim, a NFL tem o compromisso de ajudar a encontrar técnicas alternativas de teste que conduzam a precisão nos diagnósticos sem depender do uso de normas raciais”.

Para avaliar casos de demência, os médicos precisam estimar qual era a capacidade cognitiva de uma pessoa anos atrás, e compará-la à condição atual. Em teoria, as normas raciais foram desenvolvidas de forma a permitir que os médicos façam estimativas aproximadas sobre a capacidade cognitiva de pessoas brancas e negras no passado.

Mas o uso da raça para avaliar capacidade cognitiva é problemático porque não leva em conta fatores como a saúde, nível de educação ou antecedentes econômicos da pessoa. Muita gente –por exemplo os membros de famílias racialmente mistas– não se enquadra com facilidade em categorias raciais excludentes. Os jogadores da NFL são um grupo único porque quase todos eles fizeram pelo menos três anos de universidade. Comparar os atletas a grupos maiores de americanos brancos e negros pode resultar em números enganosos, dizem especialistas.

“Na comunidade científica, agora existe um amplo reconhecimento de que raça/etnia representam um indicador pobre para experiências sociais que duram toda uma vida, e as supostas diferenças raciais de QI já foram negadas de forma conclusiva”, escreveu a médica Katherine Possin, do Centro de Memória e Envelhecimento da Universidade da Califórnia em San Francisco, em artigo publicado pela revista médica JAMA Neurology em dezembro.

“Mesmo com as melhores normas, o diagnóstico de distúrbios cognitivos não deve ser decidido com base em uma fórmula esquemática de placares de testes cognitivos.”

O debate quanto ao uso de normas raciais não se limita ao contexto do acordo da NFL sobre concussões. No passado, seu uso, intencionalmente ou não, fez com que pacientes negros tivessem recusado o tratamento por diversos problemas de saúde, escreveram Darshali Vyas, Leo Eisenstein e David Jones em artigo para o New England Journal of Medicine em agosto.

Os médicos disseram que o problema com relação a normas raciais existe também no sistema de justiça criminal, onde elas são usadas a fim de determinar a intervenção policial em comunidades e para definir sentenças de prisão. Alguns legisladores federais americanos querem eliminar os algoritmos que discriminam contra mulheres e pessoas não brancas ao decidir sobre todo tipo de coisa, dos anúncios que as pessoas verão online ao tratamento de seus pedidos de emprego, cartões de crédito e outros produtos.

“Formas prévias de discriminação racial baseadas em vieses humanos agora estão sendo incorporadas a algoritmos que parecem ser racialmente neutros, mas não são, porque se baseiam em dados e em práticas de caracterização racial que prevaleciam no passado”, disse Dorothy Roberts, professora de estudos africanos, lei e sociologia na Universidade da Pensilvânia, e estudiosa do uso de algoritmos.

“A tecnologia pode ser usada para promover a igualdade ou perpetuar a desigualdade. Tudo depende de quem a controla e que dados são incluídos nos algoritmos.”

Tradução de Paulo Migliacci

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