Descrição de chapéu Tóquio 2020 paraolimpíada

Fenômeno no futebol de 5, Ricardinho revela angústia antes da Paraolimpíada

Três vezes melhor do mundo, brasileiro sabe que será difícil se concentrar em meio à pandemia

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São Paulo

A pouco menos de cinco meses para a Paraolimpíada de Tóquio, Ricardinho, 32, já sabe o que esperar. Em alguns momentos, durante as partidas da seleção brasileira de futebol de 5, terá de se esforçar para manter a concentração.

"Vai exigir um foco muito maior. Tudo o que tem acontecido mexe muito com a gente. Eu fico muito sensibilizado com o sofrimento alheio, com as notícias de pessoas que morrem [por causa da pandemia da Covid-19]. Isso me abala muito. Eu vou estar lá no meio de um jogo e a cabeça vai para a família em casa. Será um desafio psicológico também. A preocupação é muito grande", afirma;

Três vezes eleito melhor do mundo no esporte (2006, 2014 e 2018) e integrante das equipes medalha de ouro nos Jogos de 2008, 2012 e 2016, Ricardo Alves é a maior referência do país na modalidade. Chegará a Tóquio (se o evento for realizado) como capitão da seleção e seu nome mais experiente.

Homens com colete amarelo e vendas, em gramado
Ricardinho (à esq.), em treino da seleção de futebol de 5, em fevereiro - Ale Cabral/CPB

O futebol de 5 é disputado por atletas com deficiências visuais e usa regras adaptadas do futebol de campo. As partidas são realizadas em locais silenciosos, em que o ambiente não tenha eco. A bola tem um guizo interno que serve como guia sonoro para os jogadores.

Ricardinho achava ser difícil ultrapassar o que sentiu na Rio-2016, mas Tóquio pode superar. Na época, mesmo já bicampeão paraolímpico e duas vezes melhor do planeta, sua convocação foi criticada entre pessoas que acompanhavam a modalidade porque se recuperava de fratura na fíbula. Ele respondeu com o gol que garantiu a medalha de ouro, contra o Irã. Considera ter sido o mais especial de sua carreira.

"Neste momento, tenho falado com os outros atletas. Precisamos viver um dia depois do outro. Eu digo isso, mas a verdade é que existe um desafio muito grande para mim também de fazer com que todos tenham foco nos treinos. Todo mundo está sensível, com a cabeça nos familiares. Alguns têm filhos, esposa e vamos viajar para o outro lado do planeta. Além da saudade, que é normal, agora tem a pandemia", ressalta.

Adiada em 2020, assim como aconteceu com os Jogos Olímpicos, a Paraolimpíada está marcada para acontecer de 24 de agosto a 5 de setembro deste ano.

Ricardinho perdeu totalmente a visão aos oito anos, depois de ser submetido a cinco cirurgias para resolver um deslocamento de retina que ele não tem ideia como aconteceu. Percebeu o problema apenas quando começou a ter dificuldades na escola.

Gaúcha, a família se mudou de Osório para Porto Alegre para que ele pudesse frequentar o Instituto Santa Luzia, referência no ensino em braile. Descobriu o futebol de 5 depois de tentar outras modalidades.

Considerado um exemplo de projeto de carreira do atleta paraolímpico no Brasil, Ricardinho mora sozinho na capital do Rio Grande do Sul, tem patrocinadores próprios e projetos paralelos ao esporte. Alguns deles devem ganhar protagonismo quando parar de jogar. Não é algo que ele planeje no momento. Acredita que sua última Paraolimpíada será em Paris-2024 e afirma que seus exames físicos mostram ter condições para isso.

A pandemia aumentou a angústia por causa dos pais. Leni Beatriz, 66, e Celio Luiz, 71, têm idades consideradas de risco para a Covid-19. É um momento em que a falta do contato físico o afeta mais ainda.

"Eu às vezes vou até a casa deles, mas evito entrar. Fico a distância. É tudo mais difícil. A pessoa que enxerga ainda conseguiria vê-los. Eu posso apenas ouvir a voz deles de longe. Fico com medo de chegar perto, dar um abraço. É algo que fragiliza bastante", confessa, com o mesmo temor da possibilidade de passar o vírus para eles que Leni Beatriz tem de ver o filho sair de casa para treinar ou viajar durante a pandemia.

Existe outra incerteza. Ricardinho não tem ideia (e diz que o mesmo se aplica aos demais jogadores brasileiros) de como está a preparação dos concorrentes à medalha em Tóquio. Não há informações disponíveis, e os amistosos que deveriam acontecer nesta época como prévia da Paraolimpíada foram cancelados. "Vai ser um campeonato às escuras. Uma caixinha de surpresas."

Ricardinho se prepara também para sentir saudade dos seus cães, parte de um projeto que pretende abraçar de vez na aposentadoria. Ele tem um pastor alemão macho e duas fêmeas de pastores belgas, raças usadas pela polícia e que costumam ser adestradas. O paratleta pretende investir nisso.

"Adoro cachorro e gosto desse trabalho de adestramento. Os meus cães são treinados para proteção pessoal, fazem segurança da minha casa e levo quando saio na rua", diz.

Ele terá mais tempo também para se dedicar à CartAberta, banda de rock em que é baixista e compositor. Em outubro de 2018, no meio da campanha presidencial, o grupo lançou seu primeiro single, "País Dominado". A letra, escrita por Ricardinho, faz crítica à desigualdade e injustiças do país. Um trecho questiona "para onde foi o futuro do Brasil? Ninguém sabe, ninguém viu."

Compor é uma forma que ele encontrou para desabafar. "A gente deve lançar novas músicas em breve. As letras expressam muito o que eu penso. O brasileiro passa por uma degradação moral e cultural. Nossa nação está sendo emburrecida. Ninguém quer estudar. É uma geração em que está tudo pronto, joga no Google e acabou. Ninguém reflete", afirma.

Ricardinho reconhece não ter muito tempo para se dedicar às atividades paralelas, por enquanto. Treina duas vezes por dia, e suas prioridades são o futebol de 5 e a Paraolimpíada de Tóquio. Dos 32 anos de vida, metade ele esteve na seleção brasileira, mas não quer passar a imagem de alguém que, apesar do sucesso do seu esporte, está alienado de todo o restante da sociedade.

"O que veio de berço, eu não perdi. Aprendi muita coisa com a bola, mas eu sou a mesma pessoa de antes. Eu tenho noção da proporção que a minha carreira atingiu, mas não utilizo isso a meu favor."

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