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Financial Times Futebol Internacional

Derrota da Superliga foi mais choque de cartéis do que luta de Davi versus Golias

Seria grosseiro negar importância da torcida, mas também insensato ignorar força das autoridades

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Robert Shrimsley
Financial Times

Os torcedores não aceitarão, gritaram os comentaristas, ao serem informados sobre os planos para a Superliga europeia. E, de fato, quando a proposta rapace e miserável desabou sobre si mesma, a impressão poderia ser a de que os torcedores venceram.

Seria grosseiro negar que a fúria incontida da torcida desempenhou um papel importante, mas também seria insensato ignorar a demonstração de força das autoridades, tanto políticas quanto do futebol. Muita gente nesta semana vai elogiar o poder da torcida e saudar uma nova alvorada na qual os torcedores serão enfim levados a sério.

Mas os torcedores mesmos fariam bem em não atribuir importância demais ao colapso de uma ideia tão mal concebida. O erro fundamental de julgamento foi menos o de interpretar incorretamente os desejos dos torcedores do que o de apresentar uma proposta que servia tão escancaradamente aos interesses dos proprietários. Nós, torcedores, talvez tenhamos vencido, mas não deveríamos nos iludir. Continuamos a ser apenas o plâncton na cadeia alimentar do futebol.

De fato, o torcedor de futebol inglês é uma das criaturas mais iludidas e mais sentimentalizadas da vida moderna. Falando em minha condição de um desses tristes detentores de carnê de ingressos para toda a temporada, posso afirmar que a existência do torcedor é absurda, um estado que desafia a racionalidade a tal ponto que faz lembrar a compra de indulgências religiosas. Afinal, nós somos as pessoas que gritam instruções das arquibancadas aos melhores atletas do planeta: “Vai, Cristiano, cruza logo essa bola!”.

Que os torcedores de futebol tenham chegado a se surpreender com a indiferença dos proprietários, para quem o futebol não passa de um negócio transacional, deveria servir como prova do sentimentalismo que nubla seus cérebros. O mesmo vale para a Premier League. Os atuais governantes do futebol podem ter jogado a cartada da torcida, mas eles estavam pensando em suas estruturas e em seus futuros, e não nos torcedores. O que vimos foi mais um confronto de cartéis do que um combate de Davi contra Golias.

Além disso, não é irracional que os proprietários sintam desdém pelos torcedores. Afinal, a retidão moral e todos os esforços de promoção de contatos comunitários contam pouco junto aos torcedores caso o time esteja perdendo; e não há objeções morais à origem do dinheiro do clube quando o time está vencendo.

Se a escolha para os torcedores do Manchester City fica entre o xeque Mansour e Kevin De Bruyne ou algum empresário local e um centroavante comprado do Rochdale, poucos torcedores optarão pelo caminho da retidão.

Em alguns países, os torcedores realmente importam. Na Alemanha, as regras garantem que os sócios dos clubes –os torcedores– detenham 51% dos votos. Mas a Inglaterra ainda não é um desses países.

Ao longo de minha vida, desperdicei milhares de libras a fim de me acomodar no frio e na chuva, e comer petiscos de estádio quase intragáveis, para quase sempre ver meu time jogar mal. Nossa capacidade de julgamento é seriamente deficiente. A alegria que extraio às vezes vem da partida em si, mas quase sempre do tempo passado em companhia de meu pai, ou de meus filhos. Quando a namorada preferiu ir ao teatro em vez de ao estádio, pude desfrutar de uma experiência nova: a de pagar demais pelos ingressos para um lugar onde não passo frio.

Futebol e arte são formas de entretenimento. Mas raramente vemos manchetes informando que a audiência não vai aceitar que o National Theatre decida encenar “Mamma Mia!” Em troca do dinheiro que desembolsamos, adquirimos o direito de ver uma peça. Se o espetáculo não agrada, deixamos de ir.

O que torna o futebol diferente é o aspecto de identidade que faz com que continuemos a pagar, por piores que as coisas sejam. No caso dos times grandes, isso significa que em geral é uma aposta segura confiar em que os torcedores continuarão a ir ao estádio.

Muitos dos times de primeira linha já substituíram seus torcedores de classe trabalhadora por espectadores mais ricos, via aumentos nos preços dos ingressos, e ficariam igualmente satisfeitos por substituir esse novo grupo por uma audiência mundial de televisão, sendo que a maioria de integrantes jamais visitará o estádio.

Mas nos deixamos iludir quando vemos jogadores beijando o escudo de seu time semanas antes de trocar de equipe em busca de salários mais altos, e por treinadores e proprietários que juram que fazem o que fazem pelos torcedores. Os únicos torcedores que não podem ser desconsiderados são aqueles de times tão pequenos e sem expectativa que os proprietários conhecem cada um pelo nome.

Portanto, sim, vamos comemorar o que parece ter sido uma vitória sobre proprietários que exageraram em suas ambições. Deveríamos desfrutar desse momento da mesma maneira que a maioria dos clubes celebra um título: sabendo que pode ter sido o último por um bom tempo.

Tradução de Paulo Migliacci

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